Passam as familiares pedras monumentais que são marcas do lugar. Passam pedaços de floresta compacta onde, creio, não penetra nem um raio de sol: a floresta poderosa com total domínio de seus mistérios, escondidos entre folhas de um verde profundo e ancestral.
Agora, o caminho clareou. Vamos pela estrada de asfalto que penetra a fundo nos territórios de minhas lembranças. De repente, surge o ícone, a pedra grossa envolta numa tênue camada de neblina. Acho que a Pedra Azul fica muito mais charmosa assim. Efeito provável de um atavismo que se manifesta com frequência: neblinas que habitariam recordações longínquas e esquecidas.
Ficam para trás pedreiras, montanhas e matas cerradas. Entro por uma estrada vicinal e, logo, estou numa espécie de planalto talvez, com exagero, numa planície, algo muito raro por aqui. Vamos indo em frente e mais em frente. O carro anda com o motor mais aliviado depois do esforço para vencer essas subidas muito íngremes. Mais ali, emoldurada por um céu que, lá bem distante, exibe uma claridade inesperada, aparece a casa. Não é nada diferente de outras casas no estilo “imigrante italiano” já classificado pela arquiteta Isabel Perini Muniz. Vejo-a pela lateral e apenas vislumbro à esquerda a varanda típica, local de transição entre o mundo natural e o mundo humano que vive no interior das casas. As janelas estão fechadas e a caiação é recente. Se não há agora ninguém morando nela não é também uma casa abandonada porque, além da caiação nova, as colunas feitas dessa madeira certamente tirada de florestas antigas em que a região toda era mergulhada estão pintadas com uma brilhante tinta preta, como é próprio do estilo dessas casas. Estou há cerca de dez minutos, com o carro parado, olhando essa casa que me atrai por uma razão inexplicável. Nunca estive antes por aqui, a casa não é a única do tipo embora a maioria seja construída de modo diferente para atender a novas necessidades ou lá o que seja. Então por que essa casa? Não tenho resposta. Desço do carro e vou comprar biscoitos na lojinha em frente.
“Que casa é aquela?”- pergunto à menina simpática que vende queijos, pães, biscoitos e doces.
“Da família Girardi”.
Pouco antes de ir até aquele lugar me impressionei com um enorme galpão onde havia duas grandes carretas estacionadas, não longe da margem da 262. Imaginei que fossem próprias para o transporte de café, produto predominante na montanha capixaba.
“Não, nesse galpão eles processam cenouras. Lavam, classificam e depois as distribuem”.
“Mas serão necessárias essas enormes carretas para distribuição? Tanta cenoura assim?”- pergunto.
“Sim, exato.”
Diante da casa que a menina disse ser da família Girardi lembrei-me desse diálogo e de imediato surgiu uma linha de tempo marcada por essa grande quantidade de cenoura que indica um importante mercado consumidor diversificado e o que dizia Luiz Derenzi em seu livro clássico sobre os primórdios da imigração, isto é, da ruptura de hábitos de consumo dos imigrantes que, nos primeiros tempos, não tinham o queijo de Parma, o presunto, o vinho e outros alimentos a que estavam habituados. O fato histórico é que o “Queijo do Girardi”, feito naquela casa, como confirmei depois, reiniciou o hábito do consumo de queijo entre nós. É verdade que havia queijos importados do reino, mas destinados a um mercado consumidor restrito. No meu caso, experimentei essa iguaria na infância, em Castelo, no rol de produtos que chegavam até nós, em lombo de burro, por uma estrada de terra vinda de Venda Nova. A “polenta brustulada” com queijo permanece em minha memória como manjar de deuses, embrulhado num papel manteiga lambuzado de saudade.
Ali, na planície, a casa donde vinha a delícia.