Cercas

Naquele tempo havia muitas cercas de madeira. Dessas com ripas de topo cortado em forma de triângulo e pregadas em longarinas. Um conjunto agradável de ver. Representavam os limites do tal “castelo do homem” como diziam antigamente os ingleses a propósito de suas casas. 

Há cada vez menos, nunca em cidades, esse tipo de cerca. Se a preferência agora é por grades de ferro, câmeras de segurança e cercas elétricas, é porque alguma coisa mudou e não foi só o horário dos ônibus.

Mas neste momento há urgência em esquecer o noticiário rotineiro de invasões de residências por ladrões (ladrões, por favor, e não “assaltantes” ou “bandidos” com suas fumaças românticas). Daí me ligar naquelas frágeis e antigas cercas de madeira como uma espécie de fuga. Vêm em meu socorro neblinosas lembranças de certos escritores da velha guarda que falavam muito dessas cercas, geralmente pintadas de branco, protegendo a toca a que tem direito qualquer bicho humano. O lugar onde você poderia sentar-se na melhor cadeira para ler o jornal admitindo que o mundo seja incapaz de ultrapassar os frágeis limites das cercas de madeira sem o seu consentimento.

Mas como mesmo as cercas elétricas e as câmeras de segurança, cada vez mais, se mostram inúteis para espantar ladrões, será suficiente “não reagir” como é geralmente recomendado? Nas atuais circunstâncias talvez a melhor atitude. Mas sobra um grande mal-estar. Pergunto se você não tem a experiência de ouvir alguém regressado recentemente do exterior (excetuo lugares de conflito interno permanente embora nesses, em geral, os contendores estejam armados e as chances de aniquilamento sejam recíprocas). Sufoque o amor a seus pagos e ouça com inveja o relato admirado dessas pessoas vindas de regiões não conflituosas. Ouça como elas passearam despreocupadas durante a madrugada, como foram ao cinema e ao teatro e voltaram para casa sem serem agredidas ou roubadas. Surpresa: essa seria a regra e não a exceção. O que mudou? Uma resposta comum aponta para as diferenças de renda e riqueza como causas. Proclama que a “culpa é da sociedade” e muda de assunto. Mas se as estatísticas estiverem certas, no Brasil, houve uma sensível melhoria na situação econômica de classes de menor renda. Então, como nos ensina a regra de três, deveria haver uma relação inversamente proporcional na incidência de crimes. Os fatos porém nos dizem, ao contrário, que está havendo uma relação diretamente proporcional entre essa melhoria de renda e um aumento de ações criminosas. Portanto, a usual explicação é insuficiente. A culpa é do incentivo ao consumo? Naqueles outros países do mencionado viajante que regressa, também existe TV e publicidade, ou seja, é preciso descartar mais essa hipótese.

Bem sei que esta falação é tão inócua quanto as cercas elétricas. Mas foi uma forma de desabafar diante do noticiário que vi pela televisão nesta manhã. Um noticiário que quase tem se limitado a nos informar a quantas anda o tráfico de drogas, os roubos, os sequestros e assassinatos. A culpa é do noticiário? Da polícia, que deveria colocar um policial a cada metro quadrado? Aliás, o assassinato de policiais é visto como rotina, como a sucessão de dia e noite, “estão lá pra isso”. Como? Talvez uma variante envergonhada do estilo “chame o ladrão” na linha do extremista Wilhelm Weitling, adversário de Marx. (Quem quiser ir mais fundo, ler a introdução de Harold J. Laski para o “Manifesto”). Namoro com a barbárie? Ainda que para certos círculos intelectuais citar o Kenneth Clark de “Civilização” não seja “apropriado,” dar-lhe a palavra agora me parece oportuno: “Já houve – diz ele – quem me dissesse preferir o barbarismo à civilização. Duvido que tenham suficiente experiência com o primeiro”.

Mudanças culturais e precarização de qualquer tipo de direito de propriedade?  

O fato é que a tal “sociedade culpada” é um universo de perguntas.

 

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