Barulho de avião é o que não falta por aqui onde moro. O progresso? O problema é que meus ouvidos são reacionários. Reagem e dão sinais de que em breve poderão negligenciar de suas obrigações. Mas nem todo barulho de avião é desagradável.
Passávamos uns dias na casa de família amiga, na Granja Viana, arredores da capital paulista.
No meio da noite, aviões passavam a grande altura, e faziam um barulho diferente do que me incomoda no dia a dia. Ruídos quase imperceptíveis. Imaginava pessoas viajando, livres de suas rotinas e prestes a iniciar redescobrimentos na aventura de viver. Mais ou menos o que todos sentimos ao viajar, nos primeiros contatos com lugares desconhecidos. Certo gosto de reinauguração, de liberdade em novos panoramas naturais e humanos. Mas aqueles aviões com seus roncos suaves que sumiam na noite, acabaram por me levar a um rumo inesperado. Precisamente para um velho filme francês, “Esta noite é minha”, de René Clair, com Gérard Philipe. Claro, no Trianon. Seu personagem, um poeta que se dizia inconformado com a mediocridade de sua época e sonhava com uma boa época que teria havido no passado. Enquanto os ruídos dos aviões se perdiam na noite lembrava-me do personagem de Philipe que, em sonho, chegava até a pré-história sem encontrar o tempo ideal. O fim dos barulhos de avião confundindo-se com a frustração do poeta.
Glemar e eu passávamos dias muito agradáveis com a família Tolle. Paulo foi um dos melhores bons exemplos de convivência humana. Kate, sua mulher, admiradora de Rubem Braga, gostava de citar crônicas do conterrâneo o que, afinal, afagava meu ego bairrista. Além do agudo senso de humor, Paulo até me surpreendia por uma erudição envolvida numa leve atmosfera brincalhona. Ele me fez entrar, por exemplo, em certos territórios de Shakespeare removendo obstáculos e mistérios para compreensão da arte do genial inglês. Revelações do Bardo que quase me faziam aceitar o provocante título de “Invenção do humano” que Harold Bloom colocou em seu livro sobre o gênio de Stratford on Avon.
Paulo Tolle foi Secretário da Educação de São Paulo e um dos fundadores do ITA, que está entre os melhores institutos de educação do País. Gostava de historiar a luta junto com o Brigadeiro Casimiro Montenegro para fundar a instituição em meio a uma floresta de obstáculos criados pelos imperadores da mesmice quando não por regressistas.
Entre nossas incursões pela pauliceia recordo-me de visita à Pinacoteca do Estado, perto da Estação da Luz, onde quisemos rever e conversar sobre um quadro de Almeida Junior. O quadro “Leitura”, do artista, feito no final do século dezenove, é uma obra que faz saltar em nossa frente toda uma fase da vida brasileira. Soterrado sob a avalanche do Modernismo de 22, Almeida Junior “sacode a poeira e dá a volta por cima”. Ali está não mais a sinhá moça das fazendas de café, mas uma mulher, nos primórdios da industrialização paulista, que lê um livro na varanda de uma casa confortável, construída na periferia da cidade, ainda com precárias condições urbanísticas e que procura, pela leitura, saber das coisas do mundo. Não mora mais num casarão de fazenda, mas numa casa de arquitetura nova, provavelmente custeada pelo incremento de uma acumulação econômica favorecida pela florescente economia cafeeira, etc. O quadro é uma marca da luta pela emancipação feminina. Mas fico por aqui.
A razão maior destas notas é porque me veio a necessidade de falar do amigo Paulo que nos deixou há pouco.
Enfim, se em “A noite é minha” o poeta Philipe não conseguiu localizar um bom tempo, o tempo de convivência com o amigo Paulo Ernesto Tolle, está arquivado junto a outros bons momentos vividos e que servem de contraponto para as agruras que, como diz Mauriac, são as inevitáveis aluviões criadas pela vida.