Mata fria II

O carro derrapa na areia e quase vamos parar no barranco. Ladeira braba. Essa areia é um tipo de arenito que chamávamos de “areia branca” e, antes do asfalto, usada para pavimentar ruas de cidadezinhas próximas e livrá-las da lama. Sua presença por aqui se mostrava por uma faixa esbranquiçada vista desde a parte superior da cascata perto da estrada que vai para Marechal. Se você estivesse subindo a montanha de carro de vez em quando avistava seu rastro em claros abertos na floresta. Gostava de acompanhá-la enquanto viajava. Gostava. Menos agora que o carro derrapa no arenito e quase vamos parar no barranco. Mas não aconteceu e, por isso, continuamos subindo e entrando no território da Mata Fria. Isso mesmo, o lugar misterioso que incendiava a imaginação dos imigrantes. Histórias e mitos que se acrescentavam às incertezas e surpresas de um território bem diferente das planuras vênetas de onde veio a maioria deles. A compensação vinha da grande beleza das montanhas mesmo que a fertilidade da terra não fosse das melhores. Depois da derrubada das árvores para plantio a fertilidade diminuía dramaticamente e as dificuldades cresciam. Muitos desistiram e foram para o Norte do Estado. Outros ficaram e o fato da existência de tantas comunidades que persistiram por aqui é prova de que as dificuldades foram e estão sendo enfrentadas. 

Tais elucubrações, percebo agora, são apenas cortinas para conter a emoção de estar pela primeira vez entrando nesse território. Só sabia dele pelo que contavam naquela noite perdida no tempo, recheada de conversas ao lado do fogão de lenha para espantar o frio.

Seguimos. Lá na frente, uma ladeira muito mais inclinada beirando uns quarenta e cinco graus, cheia de ranhuras profundas provocadas pela ação da chuva. Obstáculos difíceis de vencer. Desistimos. Os deuses da mata estariam nos observando com sorrisos irônicos? Afinal, entramos nela por escassos dois quilômetros, se tanto, e a Mata Fria naturalmente é um vasto mundo com uma enorme coleção de mistérios, onde essa ladeira muito inclinada talvez seja uma das guardiãs que a protegem de olhares curiosos. Bem provável. Voltamos. Na ida, mais preocupados com as dificuldades da estrada, não prestamos muita atenção à paisagem. Daí veio uma pequena forra, porque a Mata Fria não conseguiu esconder algumas belezas tão ciumentamente protegidas.

É verdade que bonitas vistas de montanhas não é o que falta por aqui. Mas o que é aquilo lá na frente? Um paredão compacto que não se sabe se coberto de vegetação ou é de pura pedra. A tarde que cai cobre o paredão com uma sombra azulada. Isso a faz ainda mais fascinante. Não sei muito o que falar porque o impacto é intenso a ponto de achar que esse altíssimo paredão bate no céu ou em suas  cercanias.

Não tenho capacidade para compreender o apelo daquele Naess, o filósofo norueguês, que nos pede para “pensar como uma montanha”. Mas aceito que se trata de um pedido intrigante. Me permito uma variação. Se não consigo pensar como ela, a impressão que o paredão montanhês me deu é que ele sim pensava. A montanha pensava. Era assim que me parecia aquele fantástico maciço fincado no coração da Mata Fria, imerso em silêncio. Pensava talvez em seu futuro. Quanto tempo poderia ser ele mesmo? Me parece que era essa a preocupação do norueguês, um dos primeiros defensores radicais da Natureza.

Quase saindo do território da Mata encontramos duas mulheres mexendo no mato da estrada com varas. Que faziam? Disseram-nos que caçavam preás. Um recurso alimentar para populações marginalizadas num tempo que já me parecia morto. Um recuo que, na minha observação, chega lá pelo início da Segunda Guerra. Parcelas da população vivendo ainda como coletores, ou seja, confiando na oferta errática da natureza para sobreviver. Estou exagerando? Acho que não, porque essas duas mulheres que cutucam o mato com suas varas têm aparência bem humilde. E aí aparece o dilema clássico. Até quando a montanha permanecerá íntegra e pensativa? Até quando nossas necessidades materiais a deixarão incólume?

A Mata Fria? Voltaremos por um caminho alternativo cuja existência nos foi revelada depois de nossa tentativa semi-frustrada de invadi-la.

“Retornaremos” – como diria Mc. Arthur.

 

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