Apadrinhados de Netuno

O mar cinza claro, aço polido. Ondas cautelosas chegam à praia com cuidado para não assustar os banhistas: dois casais. Com toda probabilidade, novatos de mar pela forma como se portam diante dos estonteantes domínios do soberano Netuno. Visivelmente intimidados diante da demonstração de poder do deus do mar sobre essa escandalosa fatia de beleza que se estende sob seus olhares extasiados. Mas, estão felizes e isso é evidente.

A tarde é de sol de outono, quer dizer, sem as contundências daqueles verões escancarados e que, sem cerimônia, massacram nossa pele com ardências dolorosas. Este sol outonal não é assim. Solzinho camarada que nos aquece em nossas cadeiras e sugere uma soneca enquanto uma parte da cervejinha dourada ainda está no copo e onde o tal solzinho veio bater como num cumprimento de boa tarde.

“Boa tarde, Piúma.”

Deixe a soneca para depois. O mar se abre generoso diante de nós. Ali na frente, três ilhas e umas delas é a do “Francês”. É o mote. Desabam em sua cabeça histórias desencontradas e de que se lembra confusamente.

“Que francês”?

Ninguém sabe direito. Até que ele se aproxima e, com ares sabedores, diz:

“O francês foi um nobre fugido do Terror da Revolução Francesa. Escapou da guilhotina e se escondeu ali naquela ilha. Segundo relatos que estão em uma memória escrita da cidade, detestava Voltaire – aquele porco iluminista – e dava banquetes custeados com o ouro que conseguira trazer da França. Os frequentadores do banquete formado por um pessoal estranho e inacessível que chegava de um navio-fantasma ancorado a certa distância da ilha. Baixavam uns botes e faziam uma festa ruidosa que era ouvida pelos piumenses até alta madrugada (apud Luís Guilherme in “A Nau Decapitada”). Depois, voltavam para o navio que sumia no horizonte sem fazer nenhum contacto com a terra. É o que se conta”.   

Dito o que, o contador da história afasta-se.

Pergunta à moça sobre a história que acabara de ouvir;

“Verdade?”

A moça não responde logo. Depois diz que muita gente acredita nela embora outros digam que o francês era mesmo um contrabandista de armas e do ouro que vinha secretamente das Minas Gerais.

Não está disposto a verificar arquivos ou pedir mais opiniões sobre isso. 

A tarde continua a brilhar sobre o mar de aço, indiferente a essas histórias inventadas ou não. Agora é mais interessante olhar os tais banhistas que, adquirindo mais intimidade com o salso elemento, espadanam água por todo o lado como fazem todos os neófitos de mar no primeiro contacto ritual com a pátria comum.

No entanto, o que eles ainda não sabem é que estão numa faixa de litoral com ingredientes secretos e conhecidos apenas de iniciados. Vamos deixá-los e seguir ao encontro dos privilégios, razão principal de nossa viagem até ali porque nós sabemos.  

“Ainda é lá mesmo. Segue a rua do Centro, vira à direita e chegou...”

Parece que tiraram da parede o grande painel com a figura de Netuno porque estava dando confusão, ciumeiras. Mas nem precisou muito tempo para percebermos que o velho deus do mar ainda protegia os seus afilhados travestidos de pescadores. Quase escondidos atrás de montanhas de camarões, lagostas e peixes de infinita diversidade, os pescadores nos ofereciam as dádivas do mar.

Uma quantidade de prendas vindas do oceano que só dava credibilidade ao pescador sentado num tronco cortado de árvore:

“Passei o anzol e de uma vez só pesquei três.”

Mentira de pescador? Em qualquer outro lugar, sem dúvida. Ali, apenas uma prova dos privilégios distribuídos a mancheias por quem se deixou enfeitiçar por este pedaço de litoral. Ninguém menos que o generoso Netuno.

Ave!    

 

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