Uma certa Buenos Aires

No regresso, ao som do excelente Piazzola, uma aparição de Buenos Aires.   

A SURPRESA

Você é surpreendido logo de manhã por um conjunto de portas de aço de ares monumentais com seus quase cinco metros de altura e que se estendem por longo trecho da Avenida San Martín. Não apenas. Dobram a esquina e vão acabar na outra rua cujo nome ignora. São portas escuras, de ares sombrios, cobertas de poeira ou fuligem. Mais acima, janelas também enormes adornadas de arabescos de bom gosto. Todo esse conjunto misteriosa e hermeticamente fechado. Antes que procure me informar do que se trata, ou seja, o porquê desse vasto prédio inerme como uma manada de elefantes deitados na sombra, descubro no meio da fuligem um nome quase apagado: Harrod`s. Um nome que é um descompasso. Um inglês por aqui? Um imperialista que provavelmente dirá que as Malvinas são dele contrariando o que dizem os inúmeros papéis colados nos postes de iluminação gritando que não, as Malvinas são argentinas. Porque talvez isso seja fundamental tanto para conter a inflação que come os salários como para combater a pobreza. Sem as Malvinas como será possível?

PUERTO MADERO

Os recuperados armazéns alaranjados de Puerto Madero, com suas risonhas faces marinheiras, seriam talvez o sonho dourado daquele sombrio prédio da Harrod`s,porque assim, aliados numa nova Buenos Aires, seriam a antítese do tango tradicional com suas tragédias irreparáveis. Puerto Madero e seus prédios de linhas horizontais brilham ao sol de domingo abrigando moradores (imagino convicto) horizontalmente felizes. Mas os silos de trigo, adormecidos, falam da época nostálgica de Gardel. Aposentados perguntam se me lembro. Claro, o pão da memória que nascia aqui. Mas, agora, não são mais nada. Apenas tubos meio ridículos atrapalhando a imagem do outro lado do rio. Um rio de águas brilhantes por onde passeiam barcos carregando gente alegre que acena para os que estão almoçando nos bons restaurantes deste belo lugar.

CENTRO

O Centro de Buenos Aires vive nos anos 30/50. Respira uma confortável vida econômica. A exportação de carne para a Europa está em alta e os ricos estancieiros que visitam a cidade divertem-se na boate onde Gilda canta “Put the blame on Mame”. E, como todos sabem, a capital do Brasil é Buenos Aires. Os prédios do Centro respiram a tranquilidade dos de bem com a vida. É um tempo de placidez em que os artistas que trabalham nos belos adornos que enfeitam as fachadas têm todo o tempo do mundo para capricharem em suas obras. É tranquilo andar nesse Centro onde os prédios circunspectos parecem cumprimentá-lo cerimoniosamente.

“OS QUADRADÕES”

Estava demorando. Não estava disposto a especular e nem era hora. Mas o que fazer quando de repente lhe aparece uma franja da questão social? Porque inesperadamente ela lhe é insinuada pela arquitetura desses apartamentos do sul da cidade. São os “quadradões” com suas janelas geometricamente regulares que remetem a custos econômicos e itens similares. Não estão muito longe do Centro e são visíveis ameaças àqueles edifícios que vivem a ilusão dos anos quarenta. Os “quadradões” não aceitam ou não podem aceitar os prédios pacificamente horizontais de Puerto Madero. Querem invadir o Centro, racionalizar procedimentos. Discursos de igualdade. Se não satisfeitos, irão formar multidões na Plaza de Mayo para manifestações retumbantes.

RESTAURANTES

É notório que se come e bebe bem em Buenos Aires. Você tem razão, João Augusto: o “Oviedo” é um de seus templos da gastronomia. Mas me impressionou aquele restaurante, “El Establo”, que fica numa rua escura do Centro. Além do mais, a comida não é ruim, o que seria uma heresia inadmissível para o orgulho portenho. Veja, porém, as marcas de uma decadência discreta e digna em suas madeiras de verniz gasto. Veja que mulheres elegantes o frequentam, embora vestindo roupas de nítidas “estações” passadas. Para manter a ilusão de que o sonho não acabou, erguem suas taças de vinho com o aplomb dos bons tempos.

LIVRARIA

Cascatas de livros descendo das estantes altíssimas de “El Ateneo”, a maior livraria que vi até hoje. Dizem que só em Buenos Aires há mais livrarias que em todo o Brasil. Nosso ufanismo se encrespa, mas vendo o desinteresse pela leitura que grassa por aqui, melhor enfiar a viola no saco. Então, a pequena desforra: “Você tem a Riqueza das Nações, de Smith, da edição Edwin Cannan?” O vendedor me olha meio surpreso, mas mostra competência profissional ao especificar: “Sim, um livro de formato grande, capa dura, não, não temos, no momento.” Doeu a estocada que ele dá no final: “Obra rara.” Explico a dor da agulhada: não tem em “El Ateneo”, mas tenho (tinha?) em minha casa. No momento, sumido. Para garantir, queria comprar outro exemplar, mas o livro não está disponível nem mesmo naquele oceano de livros.

 

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