“Ponte Buarque de Macedo... Assombrado com minha sombra magra...”
Álvaro descobriu o poema de Augusto dos Anjos num livro emprestado da Biblioteca Pública.
“Ponte Buarque de Macedo... Eu indo em direção à casa do Agra...Pensava no Destino e tinha medo...”
A voz do Álvaro quebrava o silêncio da madrugada jucutuquarense. Sua figura magra, de cerca de metro e noventa, se projetava nas águas poluídas da vala que canalizava um riacho vindo de Fradinhos. Ali nos reuníamos quase toda a noite para resolver os problemas do mundo e cultivar as abobrinhas do quotidiano. Nós quem? Além do locutor que vos fala e do Álvaro, Ruy Benezath, Paulo Coutinho, Beto Carvalho, Alberto Saad, Ailton Lima, Heitor, ex-ponta direita do selecionado fluminense de futebol e acho que só.
Nessa época Álvaro havia descoberto livros da Biblioteca e um dia me disse que estava lendo uma obra espetacular chamada “Recordações da casa dos mortos” de um tal de Dostoievsky. Falou do “tal” por vários dias. Curioso, pedi que me passasse o livro. Na noite em que me trouxe o “Recordações...” comecei a lê-lo imediatamente sob a luz mortiça dos postes de iluminação que margeavam a vala. Continuei a lê-lo em casa e nos dias seguintes. Resultado: decepção, porque não gostei. Disse isso ao Álvaro que não fez nenhum comentário. Até hoje não tenho uma explicação para esse juízo, digamos, quase heterodoxo. Ainda que tivesse seria impossível dá-la ao Álvaro porque ele nos deixou há muito tempo. Resta apenas o fato de que não consigo ler Dostoievsky. Problema meu, claro.Uma explicação que também não posso dar ao Pedro Nunes, admirador irrestrito do russo. O Caco Appel? No dia em que conversamos sobre o autor de “Crime e Castigo” o Caco não chegou a manifestar-se, mas desconfio que ele tenha dificuldades com o russo. Si non é vero, desculpe-me.
Mas Álvaro, que era contador de uma firma de exportação de café, tinha outros interesses. Por exemplo, uma de suas admirações era o sambista Jorge Veiga, que uma vez apareceu por aqui e se apresentou no parque de diversões armado num capinzal que havia no fim da Avenida Capixaba, perto do casarão onde funcionava a Capitania dos Portos.
Por sua insistência, fomos juntos ao espetáculo do sambista que se apresentava com a Flora Matos, sua mulher. Gostasse ou não de samba, era impossível não gostar da jovialidade do Jorge Veiga e de sua extrema habilidade como mestre de cena. Ele fazia uma coreografia original e inundava o palco com uma grande onda de alegria. Mas o melhor estava por vir.
Exatamente no dia seguinte, à tarde, estávamos o Álvaro e eu na rua do Rosário quando, de repente, aparece, dobrando a esquina da Jerônimo Monteiro, ninguém menos que o próprio Jorge Veiga. Então, como habitualmente fazia junto aos amigos, Álvaro começou a trocar pernas numa imitação do sambista que vinha descendo pela rua do Rosário. Ao ver Álvaro gingando, Jorge Veiga passou a fazer o mesmo. Ao se encontrarem passaram a rir muito, se abraçaram e ali mesmo o simpático sambista improvisou um número que foi aplaudido por pessoas que, a esta altura, se aglomeravam para apreciar o espetáculo. Não me lembro da letra cantada pelo Jorge naquele número improvisado. Apenas fiapos da memória repetem algo como “Carmen e Dolores gostam de mim...” e não tenho a menor ideia do que se trata.
Álvaro, como disse, era contador e me recordo que tinha conceitos originais para a área e uma delas era de que a rubrica “capital” devia, nos balanços, ficar no lado do ativo. Creio até que publicou artigos de jornal sobre o assunto.
Aos domingos, geralmente com as facções de tropas da nação de Jucutuquara, faladas no início, íamos à praia. Um dia concluímos que estávamos nadando muito mal. Iniciamos então uma fase intensiva de treinamento, durante a semana, ao raiar do dia, e que terminava bem antes das oito, horário do início do “batente” para todos. No que me concerne, o máximo que consegui foi ir da Praia do Barracão até a Praia do Canto. Uma distância, hoje, impossível de ser avaliada. A bem da verdade, posso dizer que não media mais de uns cem a cento e cinquenta metros. Culpa do cigarro. Vexame. Álvaro fez a melhor performance do grupo. Nadou da Praia do Barracão até a Ponta Formosa (Iate Clube).
Álvaro ficou noivo de Vandete, uma moça de Bezerros, Pernambuco. Nessa época, só parou de choramingar pela distância que os separava quando se casou. No dia do casamento, como se diz hoje, rolou uma baita festa.
Certa vez... Não. Chega de saudade. Álvaro Barboza, um amigo.