Aachen

Debaixo desse nome carregado de guturalismos esconde-se Aix-la-Chapelle com seu perfume de tramas e intrigas cortesãs. Aix, nome francês de Aachen, jamais pressentido nesses prédios cinzentos. Embora um cinza puxado para uma modernidade cheia de chips, bytes, cheiros anódinos revelando escritórios supermontados cujas impressões digitais mais óbvias são essas esquadrias de alumínio dito anodizado que trancam nossa visão para qualquer coisa que possa ser uma âncora, um refúgio longe desta sala.

Cerimoniosamente discutimos temas bem complicados. Há a sensação de que mesmo que fiquemos aqui durante um século nossa reunião ficará indefinida.

Participam, como anfitriões, respeitáveis cidadãos que envergam ternos e ares também cinzentos. Não quer isso dizer que a discussão seja menos acalorada. Mas paira sobre todos nós um tédio profundo que, afinal, nos irmana e se acomoda como um líquido obediente a essa arquitetura friorenta. Continuamos a discutir sobre o pi, o quadrado e o círculo sem que cheguemos nem perto de qualquer consenso. Mas cumprimos um ritual. Por fim, brindamos com taças de cristal contendo sucos de frutas tropicais, provavelmente do centro da África, servidos por lindas lourinhas de capa de revista e sorrisos de anjo. São afinal anúncios de que há vida fora desta sala climatizada por fortes sopros de ursos polares amestrados, presos em grandes gaiolas suspensas nas paredes.  

Em certo momento, pedimos licença e vamos até a janela do lado esquerdo do presidente dos debates. Deslocamos suavemente a bandeira da janela e olhamos para fora. Ali estava a estátua do eterno guerreiro, montado no cavalo que poderia até ser chamado de corcel não fosse um monte de esterco sobre sua viseira, o que prejudicava bastante uma alardeada fogosidade. Não dava para saber se o guerreiro de sempre era um de nosso tempo ou um daqueles que, nos anos remotos, haviam destruído a cidade como parece ser a rotina de Aix, perdão, Aachen desde sempre. A destruição e a reconstrução rotineiras para provar que som e fúria são consequentes.

A tarde cai com lentidão e vai descolorindo com método os contornos já imprecisos da cidade onde Carlos Magno foi reunindo pedaços de uma civilização estilhaçada para recomeço de uma aventura interrompida. Uma lembrança que, ao menos no momento, incomoda. Vem revestida de um cansaço que passa por medievalismos, renascenças, iluminismos e encalha no irracionalismo e fundamentalismo de sempre. Recomenda que a memória seja asfixiada ainda que o cavaleiro da estátua equestre, por um momento, antes que a escuridão o envolvesse por inteiro, me desse a impressão de exibir no rosto de bronze um sorriso irônico, o que aumentava a perplexidade e o mistério.

 

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