Vestígio de uma noite antiga

Minha avó paterna, Dona Anecy, não gostava de ficar sozinha. No que tinha toda razão. Ficar sozinho é na maioria das vezes muito chato, pode dar lugar a lembranças de que é melhor esquecer ou povoar o imaginário de assombrações. Bom mesmo é uma espécie de solidão assistida, ou seja, solidão ma non troppo, com gente querida ao alcance da mão, que o ser humano é, apesar de hostil, um bicho gregário.

Em algum momento da década de 1970, numa São José do Calçado nevoenta e amarelada por uma luz noturna muito débil, eu fui sua companhia noturna, até pouco depois das nove. Havia compensações: por exemplo, era chegar e ela prodigalizava seu sortimento de doces e quitandas – de tão boas, suas quitandas são um assunto à parte. E havia uma cozinha silenciosa, eu me escafedia para lá e ficava lendo. Até que acabasse a novela das 7.

Aí sucedia o próximo estágio de nossas noites. Dona Anecy, desligando a TV, me chamava, já abrindo a tampa de sua eletrola Phillips portátil, vermelha, trocando comigo um olhar de cumplicidade. Ela apreciava, e me ensinou a apreciar os cantores que ouvia: Nelson Gonçalves e Orlando Silva. Pedia o disco, pegue aí para mim o disco do Orlando Silva, não, não esse, aqueloutro, ah, esse mesmo, e suas mãos trêmulas colocavam a agulha no início dos sulcos. Havia também uns discos da Núbia Lafayette e da Elizeth Cardoso, que de vez em quando caíam no gosto da vitrolinha vermelha. Claro que ela também adorava Agnaldo Rayol, mas eu, só de ouvi-lo parecia que meus ouvidos murchavam. Eu ficava num desconsolo sem fim.

Depois dessa sessão musical, havia a novela das 8. Fogo sobre terra, de Janete Clair, com Juca de Oliveira e grande elenco, que foi ao ar entre 1974 e 1975 e à qual assisti inteirinha, capítulo após capítulo, em companhia dessa doce anciã.

Não passava dum desgastado dramalhão a preencher a vida de pessoas como minha avó, levando-as a esquecer um pouco as agruras da vida, a ingratidão do tempo. O esquema era trivial: trinta anos após se haverem separado, dois irmãos se reencontram. Um deles é um caboclo bruto, criado em Divineia, cidade fictícia localizada no sertão de Mato Grosso da qual nunca se afastou; o outro é o engenheiro crescido no Rio de Janeiro que retorna à cidade natal para fazer uma grande represa, um avanço do progresso que submergirá a cidade natal de ambos. E, muito ao gosto de Janete Clair, a grande dama da telenovela brasileira, os dois entram em contenda por causa dessa obra. Claro que não poderia faltar um conflito amoroso, um reencontro entre mãe e filha, enfim, esses ingredientes melodramáticos tão ao ponto do costume da gente simples.

Trago, bem vívida, uma cena dessa novela: a câmara está em um casal sentado na pedra dum lugar da remotíssima Divineia, eles conversam, tensos. Num dado momento, diz ele algo que minha memória relembra ser assim: “Se a gente pudesse, um minuto que fosse, um instante só, parar de pensar, que milagre seria”.

Não sei o que minha avó pensou disso. Nunca saberei. Talvez seus olhos piscassem atrás da lente espessa de seus óculos. Quem pode duvidar de que ela também desejasse esse milagre que, afinal, também desejo eu: a aniquilação de todo conflito, a iluminação de toda alma, a pacificação dos instintos, a trégua interior mais abrangente, o contato interior mais profundo: um instante, um instantezinho que fosse sem pensar. Recordo-me de que ela sorria um sorriso comedido no canto da boca quando algo caía em seu agrado. É possível que tenha sido assim nesse dia, nesse momento.

 

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