Crônica sobre Nada

Para meu amigo Pedro J. Nunes

Mal surgem as ainda pálidas primeiras luzes do dia, ideias, lembranças, divagações assomam à minha mente cansada de tanto especular o tempo pretérito, de tanto se evadir nas minudências das atribulações domésticas, encontrando nelas pretexto e oportunidade para ensimesmar. Nessas horas, sinto-me intimamente consolada pela poesia de Adélia Prado, que me entende como ninguém nesse ofício de existir transitando nossas múltiplas faces entre o que aprendemos a ser e o que somos ou queremos ser. Aliás, não por acaso, ocorre-me agora o recente reconhecimento a ela conferido ao lhe outorgar o governo português o nobilíssimo Prêmio Camões pela sua inestimável contribuição à literatura de língua portuguesa. Merecida honraria, certamente diria Drummond, seu correspondente amigo e admirador.

Levanto-me toda manhã com uma crônica vislumbrada a me animar o dia, mas deixo-me sucumbir ao fado. As ideias sobre o belo musical em homenagem a Tom Jobim - nosso tão genial artista -, como tantas outras, assim como chegaram, se vão. As conversas com os amigos sobre música e livros, sobre a vidinha corriqueira, às vezes isso, às vezes aquilo, o riso solto, os projetos também caem no esquecimento ou esmorecem. Tudo isso acontece de tanto vagar. Lembro-me ainda de Luís Fernando Veríssimo, com seu fino humor, discorrendo sobre a tarefa de afiar o cálamo como estratégia do ofício de escrever. Nem mesmo o velho lápis ou a prestimosa e estimada caneta existem mais. A vida está correndo lá fora a galope.

Pensar e falar sobre as mudanças ocorridas nesse primeiro quarto de século já ficou demodée. Melhor será nos adequarmos a essa sociedade líquida, ou pelo menos admiti-la como determinante de nossos desejos e de nossas vidas, como aponta Bauman. Então, enquanto vasculho gavetas e papéis guardados, enquanto preparo o bolo de laranja para o café da tarde ou o jantar, vou refazendo a lista dos livros a ler, calculando o tempo de que preciso para desenvolver aquele projeto de escrever o livro, cuja história é uma questão de vida ou de morte, e entrego o prefácio para um livro lindo, que concluí na véspera, feliz por ter conseguido atravessar bem o dia.

Nesse momento me lembro de Os Trabalhos e os Dias, se não me engano, obra de Goethe, em que provavelmente tenha se inspirado Alberto Manguel ao intitular o seu livro Os Livros e os Dias, cujas impressões de leitura dos clássicos se entrelaçam a observações do cotidiano e a recordações. A elas se somam reflexões sobre o nosso tempo e sobre outros livros e autores. Nesse infinito diálogo entre livros e autores, tomada pela influência da releitura feita no dia anterior, trago à memória o diálogo criado por Paul Valéry com personagens de Platão em seu livro A Alma e a Dança, cujo título já sugere o embate nas relações entre corpo e espírito, problema complexo tanto para a filosofia como para a poesia. Nesse diálogo, nietzscheano no conteúdo, Erixímaco responde a Sócrates sobre a possibilidade de cura para o mal da fria racionalidade: “Nada, sem dúvida, nada de mais mórbido em si mesmo, nada de tão inimigo da natureza, do que ver as coisas como elas são. Uma fria e perfeita clareza é veneno impossível de combater. O real, em estado puro, paralisa instantaneamente o coração... Basta uma gota dessa linfa glacial, para distender numa alma os mecanismos e a palpitação do desejo, exterminar todas as esperanças, arruinar todos os deuses que estavam em nosso sangue. (...) Ó Sócrates, o universo não pode suportar, um só instante, ser apenas o que é.”  Eis aí uma questão a que permanentemente recorre a filosofia e que cabe não somente a ela responder. Antes, o problema complexo entre o corpo e o espírito, em todos os tempos, tem sido sentido e apresentado, como um alento para a alma, pela poesia.

Vitória, 20 de fevereiro/Verão de 2025.

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