O sino do Carmo

Quando ouço o som dos sinos, ouço a voz da minha infância. Devo esta recorrência infantil ao sino do Carmo. E também me vem à lembrança o verso de Bandeira: “sino de Belém, que vai ser de mim...”

O som onomatopaicamente debochado do sino do Carmo me chamava para a missa de domingo, propagando com estridência a toada conhecida na cidade, ofensiva às irmãs de caridade vicentinas.

Uma dessas irmãs, pequenina como o próprio nome – Zoé –, com sua enorme corneta branca mais parecendo uma caravela ao vento, foi quem me iniciou nas agruras do catecismo para o exorcismo das minhas inqualificáveis culpas infantis.

A ela devo, nas aulas de catequese do Carmo, o aprendizado da Ave Maria e do Padre Nosso (naquele tempo era Padre, e não Pai) invocado para perdoar as nossas dívidas (então não se diziam ofensas) assim como nós perdoávamos aos nossos devedores, como também se dizia porquanto, nos meus dias de catecúmeno, a Igreja ainda falava em dívidas que soavam a juros e moedas por quem as deveriam pagar, como eu.

Ensinou-me ainda, a irmãzinha Zoé, o terrível Ato de Contrição, que acabei desaprendendo com o correr da vida. Era a oração da redenção, rezada em silenciosa mímica labial e com muita fé depois de despejadas nas aurículas do confessor as culpas acumuladas no fundo da alma que, por segurança, o catecúmeno pecador escrevia com letra miúda num pedaço de papel para não esquecer nenhuma delas, na hora de dizê-las ao padre embutido no confessionário de madeira como sombra terrível do Todo Poderoso.

Teria a minha querida irmã Zoé pecados tão cabeludos quanto os do seu catecúmeno, ela tão diminuta em carne e osso que sua corneta imaculadamente alva é que parecia transportá-la aladamente pelos internos altiplanos conventuais do antigo convento do Carmo, transformado em colégio?

E de quem era irmã, a irmãzinha Zoé?

Verdadeiramente falando, de mim não era.

Não seria eu, um pecador angustiado, que iria merecer o privilégio de ter uma irmãzinha boa e suave como ela, toda dedicada à causa catequética, para maior glória de Deus e da Igreja.

Irmã era a irmã Zoé das outras irmãs de caridade, todas elas integrantes de uma impenetrável confraria que, ao andarem em grupo de duas ou três pelas ruas da cidade, ao invés de segurarem as saias longas e pesadas que tocavam as ocultas sandálias nos pés descalços (um dia o menino catecúmeno descobriu, sem querer, que as irmãs usavam sandálias franciscanas), o que elas seguravam  eram as cornetas engomadas que o vento indiscreto teimava em levar pelos ares.

Aquelas cornetas brancas e empertigadas, aos olhos do jovem catecúmeno em início de formação cristã, era um mistério sem tamanho pelo que ocultavam debaixo delas, que só perdia para o supremo mistério da Santíssima Trindade. Tinham realmente as irmãs de caridade, como se dizia à boca pequena, as cabeças raspadinhas num martírio de extrema humildade doado ao Criador?

Da parte do tímido catecúmeno prostrado diante dos assombros do Evangelho que irmã Zoé lhe passava a conta-gotas, nunca houve coragem para perguntar se ela tinha ou não o cabelo cortado rente para o serviço de Deus e distância dos homens. Era uma curiosidade que pesou na consciência do menino como um pecado mortal que nunca foi dito ao seu confessor, nem antes nem depois da primeira comunhão.

Como também nunca confessou que, instigado pelo demônio debochado do sino do Carmo, pecara muitas vezes ao imaginar como era o ato íntimo das irmãs que a voz do sino apregoava no chamamento para as missas dominicais: “irmã de caridade só mija em pé, não mija sentada porque não quer”. 

Quando ouço o som dos sinos ouço a voz da minha infância, povoada de pecados que nunca disse ao meu confessor. Mas já ando perto de saber se foram perdoáveis ou não, em meio à pergunta que costuma me afligir: sino do Carmo, que vai ser de mim?

 

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