O avanço do mar

Sob o ímpeto da primeira onda que se antecipara às demais, o mar chegou à porta da sua casa, sacudindo-a com estridor.

A resistência encontrada não impediu que a água vazasse por baixo da porta, inundando a pequena sala de assoalho de madeira.

Numa segunda investida, outra enxurrada, que deixou na sala mesa e cadeiras dentro d´água, esparramando-se na direção do quarto onde ele mantinha a rede de dormir suspensa nos ganchos da parede.

Seguiu-se um silêncio de expectativa durante o qual pareceu que o mar se restringia aos dois primeiros ataques. Mas logo uma terceira onda rebentou na porta, percorreu o caminho das anteriores, transpôs a sala, inundou o quarto, ganhou a cozinha e o banheirinho com piso de ladrilhos desgastados e imundos.

Se o assédio continuasse naquele ritmo, em pouco tempo a casa estaria toda alagada, a porta arrancada das dobradiças, os poucos móveis boiando de um lado para o outro, a água entrando pela frente e vazando pelos fundos onde ficava o quintal com o velho tanque sem torneira, recheado de folhas mortas, junto aos escombros de um galinheiro que de há muito perdera o nome e a serventia, sob a goiabeira centenária.

Foi então que ele se convenceu de que o dia havia chegado.

*

Há sessenta anos vinha acompanhando o avanço progressivo do mar. A princípio, quase imperceptível, conquanto contínuo, acelerou-se nos últimos anos. 

Ele se habituara a observar as arremetidas insofreáveis das ressacas, primeiro pelo encurtamento paulatino da faixa de areia da praia; depois, de forma mais notória, quando o avanço atingiu a vegetação de restinga, na divisa com a rua arenosa, desdobrando-se daí até o muro que marcava a frente do terreno onde a casa estava edificada.

Nesse tempo sua mulher ainda estava viva, e se horrorizava com a indiferença do marido assistindo apático à maré-montante que parecia ter por gula a casa onde moravam, defronte da praia.

- A catástrofe final não será para os meus olhos – objetava às ponderações que ela fazia para que saíssem dali enquanto o mar ainda bramia ameaçador, além dos muros do terreno.

- Pode não ser para os seus, mas quem garante que não seja para os meus? – contrapunha a mulher à frieza com que ele menosprezava a sua angústia.

- E quem garante que o mar não vai parar lá fora? – replicava, embora soubesse, tanto quanto ela, do improvável da hipótese.

Foram anos a fio para que o domínio do mar se impusesse passo a passo, destruindo o muro com o portão de entrada; carregando os pés de manacás e as quaresmeiras que margeavam a passarela do jardim abandonado; afogando as moitas das cidreiras e babosas; arrancando do chão as pitangueiras e a castanheira majestosa que desabou esporeando as raízes para o alto, expostas como nervos de um corpo alquebrado e gigantesco.

Ele avaliava o futuro da casa e o seu próprio pelas quadras do terreno ainda não tragadas pelas vagas, na cartografia de um naufrágio ininterrupto que seus olhos perscrutavam.  

- Resta o pé de alfazema, perto da varanda. Posso morrer antes que as águas cheguem lá.

Não morreu.

Em poucos meses, ondas e mais ondas galgaram os degraus da entrada da casa, carcomendo a base de pedra da varanda que não serviu de barricada às forças marítimas destrutivas.

Finalmente, deu-se a arremetida sobre a porta e a invasão que lhe trouxeram a certeza do desfecho indesejado, que ele sabia que viria, mas imaginava que jamais testemunhasse por acontecer somente depois que estivesse morto.

- Vou ter que sair de casa ou me afogar com ela – pensou aborrecido.

*

O fim que previra não era aquele.

Sempre achou que o desenlace de sua vida viesse sob a explosão de um enfarto letal ou de um fulminante curto-circuito cerebral, tudo muito rápido e higiênico. Aí, o que acontecesse com a casa, depois de morto, não lhe diria mais respeito. Que o mar a consumisse em golfadas impiedosas e que os moradores da vila, onde ultimamente já nem punha os pés, se lembrassem dele como de um velho amargo e solitário que teve a sorte de morrer antes que o mar levasse de roldão o teto em que morara por quase toda a vida.

Quiseram os fados, no entanto, que a ele estivesse reservado assistir à inundação irrefreável e que ainda pudesse - se assim o quisesse – se safar do dilúvio que durante seis décadas se anunciara aos seus olhos e à sua consciência, até bater em sua porta, para ultrapassá-la inexoravelmente.

Agora que a rapidez do mar vencera a lerdeza da sua morte, sentia-se traído em seu engano e boa-fé. 

Então, com a serenidade de quem não tinha mais nada a perder a não ser a casa e a vida, escancarou a porta às águas invasoras, enroscou-se na rede de dormir como quem se enfiasse no útero de um submarino solitário, e entregou-se à espera da submersão inevitável.

 

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