Fiu, fiu, fiu foi o assovio curto e agudo que ouvi quando ia descendo a ladeira Nestor Gomes em direção à General Osório, depois de passar em frente ao Palácio Anchieta.
Olhando à direita, para ver quem me chamava com tanta intimidade, dei d’olhos com o fantasma do centro histórico de Vitória emergindo serelépido da rua Francisco Araújo, antiga rua do Egito, espremida como uma tripa entre o Palácio e a Escola Normal que hoje nem sei que nome tem.
“Você sabe assoviar?” - perguntei surpreso com a descoberta.
“Não foi pelo assovio que o chamei, meu digno. Foi gritando psiu, psiu, psiu” - corrigiu-me o fantasma.
“Mas eu ouvi fiu, fiu, fiu com nitidez”.
“Eu explico o que aconteceu” - disse ele. “Você ouviu um resíduo de ar comprimido que perdura no meu espectro, resultante do pneumotórax que tive de fazer em vida para debelar a tuberculose. É um resquício de sibilo que costuma inadvertidamente acometer a minha fala.”
“Você teve tuberculose?” - quase berrei a pergunta.
“Tive. E me tratei em Palmira, Minas Gerais, onde me submeti ao pneumotórax no sanatório local, lá pelos anos 20. Foi o que me salvou, com a ajuda do clima de montanha da cidade”.
Dada a minha seriedade diante do que ouvi, o fantasma caçoou: “Não precisa ter receio, meu digno. Fiquei curado para o resto da vida e para a eternidade da minha eternidade!”
“Não se trata disso” - retruquei sorrindo. E esclareci a razão do meu silêncio: “O que acaba de se passar entre nós fez-me lembrar de um trecho do romance A montanha mágica, de Thomas Mann. Você chegou a lê-lo?”
“Infelizmente, não”, disse o fantasma. “Por isso peço que exponha a associação de ideias que o emudeceu.”
“A passagem do romance narra um encontro casual entre o personagem Hans Castorp, e uma jovem que fez o tratamento com pneumotórax, no hospital de Berghof, na Suíça. Ao cruzar por Castorp a jovem emitiu um silvo incontrolável produzido pelo gás do pneumotórax introduzido em seu pulmão. O psiu assoviado por você me trouxe à lembrança esse momento divertido do romance” - expliquei ao fantasma.
“Muito curioso o que me conta” - disse ele. “Dona Esbelta, a digníssima consorte do nosso dileto amigo o comendador Deodato, também tinha desses chiadinhos distraídos que o comendador, sempre amorável com a esposa, dizia que eram os chilreios de cotovia de Esbelta. Uma cotovia baiana, que descoco!”
“Dona Esbelta também teve tuberculose?” - inquiri admirado.
“Teve. E, ao contrário de mim, que fui para Palmira, ela se tratou alguns anos antes no sanatório de Clavadel, na Suíça, onde o poeta Manoel Bandeira também esteve em tratamento. Coincidentemente na mesma ocasião, tanto que o comendador Deodato, que acompanhou D. Esbelta no inicio do internamento, se fez amigo do poeta e se jactava de ter lido, na letra manuscrita de Bandeira, o poema Crepúsculo de Outono, que Deodato sabia de cor e recitava com voz embargada para os íntimos como eu. É o poema com versos que falam de pinheiros e de neve, no ambiente álgido dos Alpes, que também acabei decorando (e o fantasma me sapecou os versos antes que o impedisse): ‘Os pinheiros, porém, viçam. E serão breve. / Todo o verde que a vista espairecendo vejas, / Mais negros sobre a alvura unânime da neve, / Altos e espirituais como flechas de igrejas’. Mas vamos ao que interessa, meu digno, razão pela qual me intercalei em sua displicente caminhada.”
“Interessa a mim ou a você?” - perguntei esperando o pior. E o pior me colheu em cheio: “Interessa a Basílio Daemon, meu digno”.
“O historiador?!” - indaguei boquiaberto diante do absurdo da informação.
“Ele mesmo. Num recente encontro que tivemos, Daemon me pediu para solicitar a você que o atualize nos acontecimentos da história do Espírito Santo que ele “perdeu” depois que desencarnou em 1893. Um pedido que não se pode negar vindo de quem vem”.
“Se não se pode negar, por que você não assume o encargo com a vantagem de poderem conversar entre dois iguais, no lugar em que quiserem, pelo tempo que quiserem, sem serem perturbados por ninguém, poupando-me da situação estapafúrdia de falar sobre a história do Estado do Espírito Santo para um historiador falecido há mais de cem anos?” - perguntei procurando me blindar contra o convite.
“Por dois ponderosos motivos, meu digno, sobre os quais eu e Daemon conversamos: o primeiro é devido ao meu desconhecimento da história do Estado a partir de 1970, quando morri. O pouco que sei de lá para cá devo aos agradabilíssimos colóquios que eu e você temos mantido ou às sessões e palestras a que furtivamente compareço no Instituto Histórico onde, todavia, apenas logro um conhecimento fragmentado da história capixaba. O outro motivo, écoute-moi, é porque além do conteúdo histórico, ancho e ilustrado que você detém sobre o assunto, como historiador que é, falta-me a ‘compreensão dogmatizada do desenrolar dos acontecimentos segundo o prisma do desdobramento cronológico’ - e estou repetindo palavras de Daemon a quem reconheço carradas de razão para pensar desse modo. É de mister não esquecer, como ele mesmo me disse, que ‘história é cronologia estrita e bem escrita’”, o que se comprova à sobeja por sua grandiosa obra sobre a Província do Espírito Santo.”
“Pelo que vejo, o nosso eminente Daemon deseja que eu o informe cronologicamente sobre mais de cem anos de história do Espírito Santo!” - disse eu.
“Também conversamos sobre isso, meu digno. E Daemon me assegurou que, para facilitar o seu trabalho, a história que ele quer conhecer não precisa ser exposta em cronologia anual, como na obra que escreveu. Basta sê-lo por décadas, desde o primeiro governo Muniz Freire, quando ele faleceu. Se você fizer o cálculo dá um saldozinho de treze décadas incompletas. O que é isso para a História? O que é isso para você? Treze décadas condensáveis em treze palestrinhas de quatro a cinco horas diárias que não preencherão duas semanas de estreita e privilegiada convivência com o grande Basílio Daemon! Ele chegou até a cogitar, écoute-moi, que as palestras tivessem lugar na igreja de Nossa Senhora das Neves, sempre silenciosa e fechada como um sepulcro, no morro do São Francisco. Mas mudou logo de ideia reconhecendo que não seria agradável para você, pelo menos por ora, frequentar este tipo de local. Optou então pela igrejinha de Santa Luzia que, além de costumeiramente vazia e ociosa, dispõe de púlpito.”
“Púlpito?! O que o púlpito da igreja tem a ver com as pretensões de Daemon?” - perguntei escabreado.
“Ora, meu digno! Daemon quer ter o prazer de ouvi-lo falando, com toda solenidade, do alto de um púlpito, a exemplo dos sermões que fazia o padre Antunes de Siqueira. História é assunto sagrado, e o púlpito da igreja de Santa Luzia vai calhar bem ao nosso ilustre convidado” - disse ele. “E eu o endosso. Você fala e ficaremos absortos em suas palavras.”
“Ficaremos?”
“Eu e Daemon, pois não vou perder a oportunidade de me fazer presente! Só não vai ter cafezinho” - disse o fantasma bancando o engraçadinho.
A piada caiu-me na colher como o açúcar da salvação e a ele me apeguei com gosto: “Sem cafezinho não tem palestra, meu caro fantasma! Falar quatro a cinco horas, encarapitado num púlpito eclesiástico e sem poder molhar o bico num cafezinho quente e estimulante, está acima das minhas forças. Diga isso a Daemon e ofereça minhas escusas. Ou se você não quiser decepcioná-lo, diga que sem cafezinho só depois que eu morrer, o que não deve demorar muito. Peça para ter um pouco de paciência!”
Ao aceitar minha evasiva o fantasma teve, porém, a cachimônia de ratificar o compromisso: “Depois de morto, pode ser?”
“Foi o que eu disse” - confirmei encurralado.
“Então, estamos combinados” - replicou estendendo-me a mão para selar o compromisso, num gesto que fingi não perceber. Sem se agastar, o fantasma partiu serelépido como veio pela estreita, silenciosa e quase sobrenatural ex-rua do Egito, que começa (ou termina) com seus paralelepípedos entre o Palácio Anchieta e a antiga Escola Normal - dois seculares prédios do centro histórico de Vitória - por onde a passagem de um fantasma nada tem de coisa do outro mundo.
Vendo-o partir leve e fagueiro, detentor do acordo que firmamos (pareceu-me até que ia assoviando), assaltou-me a indagação arrepiante: “Será que ele sabe algo sobre a minha morte que não quis me adiantar?”