O fantasma e o comendador

“Quo vadis, meu digno? Retenha a pressa e achegue-se aos bons”, gritou com voz de fagote o fantasma do centro histórico de Vitória quando eu passava em frente ao teatro Carlos Gomes, na praça Costa Pereira.

Acedi à convocação – quem não o faria no meu lugar? – e mexi com ele, parado junto ao busto do presidente Florentino Avidos: “Diante de um fantasma da sua estirpe e de um ex-governante do quilate de Florentino Avidos, passar sem parar seria um sacrilégio”.

“Obrigado pelo elogio, mas o outro com quem estou não é o presidente Avidos. É meu diletíssimo amigo, o comendador Deodato! Há muito tempo que ele vem querendo conversar com você sobre a visita que a escritora Júlia Lopes de Almeida fez a Vitória, em 1911. O comendador foi amigo dela”.

Não tendo discernido ninguém ao lado do fantasma, julguei que o comendador estivesse atrás do pedestal de Florentino. O fantasma notou a direção do meu olhar e veio em meu socorro:

“Não adianta querer ver o comendador. Ele sempre foi muito vaidoso com a aparência pessoal e com a reputação de elegante de que desfrutou a vida toda. Sabe que além de árbitro da elegância em Vitória, ele era um poliglota reconhecido internacionalmente? Falava e escrevia fluentemente em francês (como também é o meu caso, modéstia à parte), inglês, alemão, espanhol (que ele chamava castelhano), e grego, sem falar no latim, que dominava como ninguém. Basta dizer que recitava de cor as Catilinárias, de Cícero. Tanto as ouvi na sua boca, entre longas baforadas de cachimbo à moda sherloquiana, que decorei a frase de abertura quo usque tandem abutere, Caitilina, patientia nostra? Todo esse vasto saber lhe permitiu ser sócio emérito e correspondente de várias associações culturais nacionais e estrangeiras. Só de comendas, ele recebeu mais de duzentas, guardadas como relíquias em duas cristaleiras de jacarandá, na sala de visitas de sua residência, na antiga rua da Assembleia. A cada convidado que ia em sua casa ele fazia questão de mostrar a cristaleira das comendas sobre as quais tecia longos comentários contando como as conquistara porque, para Deodato, valiam como honrosas conquistas culturais. A principal das principais era a medalha da Torre do Tombo a que meu amigo fez jus em virtude de um artigo que publicou na Revista Capichaba – lembra-se dela? – estabelecendo minuciosa comparação entre a posição estratégica do forte de São João, em Vitória, e a do castelo de São Jorge, no estuário do Tejo, em Lisboa. O artigo teve tal repercussão em Portugal que o comendador viu-se agraciado com a comenda famosa que ele exibia com orgulho pendurada ao pescoço quando comparecia a alguma solenidade pública importante. E sabe como foi recebê-la?

“De navio?”, respondi certo de que ia matar a pergunta na cabeça.

“Navio nada, meu ínclito! O comendador, na companhia de sua prendadíssima consorte, dona Esbelta, foi de zepelim! Escuta só: de zepelim. Ele foi o único capixaba que eu conheci que navegou os ares num zepelim, porque sua acompanhante dona Esbelta era baiana, não se esqueça. Mas voltando ao que estava dizendo, depois que Deodato virou fantasma passou a ter pudor em se mostrar para as pessoas por achar que o seu atual estado de abstração física é apavorante. Nem da sua invejável versatilidade poliglota ele se vale mais, a não ser em ocasiões excepcionais para falar com fantasmas de outras nacionalidades, quando raramente baixam em Vitória”.  

“Neste caso, como o comendador vai conversar comigo?”, perguntei curioso.

“Por meu intermédio, meu digno. Farei as vezes de intérprete. E com um pouco de sorte você poderá ter o privilégio de ver o cavanhaque de Deodato, em discreto contraste contra a luz do sol. É uma pera à moda de Benjamin Constant, por quem Deodato nutria uma admiração idólatra de positivista”.

“O comendador era positivista?”, perguntei mais curioso ainda. 

“Um apaixonado discípulo de Augusto Comte, talvez mais até do que Muniz Freire, um dos grandes expoentes do positivismo no Estado do Espírito Santo”, disse o fantasma, cravando os olhos à minha direita, indicando que ali se achava o comendador ombro a ombro comigo. Tive inclusive a impressão de ter vislumbrado seu cavanhaque pela primeira vez, exibindo fugazmente os fios brancos contra a luz do sol.

“Aliás, o meu estimado amigo o está saudando com o lema positivista: o Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim", informou o fantasma no seu papel de intérprete do Além. “Esta saudação ele só dedica a pessoas excelentíssimas, como é o seu caso.”

“Devo responder com uma continência?”, perguntei sem saber realmente que atitude tomar.

“Esta foi boa, não foi, Deodato?”, e o fantasma despregou uma risada que foi compartilhada com a do comendador que, ao espocar à minha direita, revelou que pelo menos a sua lúgubre gargalhada eu podia ouvir positivamente.  

“Mas ainda que mal pergunte, meu caro fantasma, o que fazem os dois por aqui, nesta manhã primaveril?”, e olhei à direita para englobar o comendador na indagação extensiva e circundante. 

“Estamos censurando acremente o abandono daquele prédio”, disse o fantasma apontando o espigão onde funcionou o antigo IAPI, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários, em décadas passadas. “Há muito tempo que o comendador não passa por aqui e ficou estarrecido com o que viu. Uma vergonha! Um descalabro! Não é uma vergonha e um descalabro, Deodato? Ele está dizendo que, mais do que uma vergonha e um descalabro, é um achincalhe às lídimas tradições da praça da Independência, como ele ainda chama a Costa Pereira”.

“Vocês têm razão”, disse eu associando-me à revolta que sentiam.

“Deodato”, explicou o fantasma do centro histórico, “jamais simpatizou com a construção desse próprio nacional. Ele acha que era preferível que tivessem deixado sem construção o terreno do edifício, uma antiga cancha para esportes, ao lado do teatro Carlos Gomes. Além disso, o seu tamanho exagerado humilha o edifício Antenor Guimarães, que foi durante anos o maior prédio de Vitória, o que deveria ter sido respeitado, no entender de Deodato. Como não respeitaram, veja no que deu: esse gigantesco espantalho público, oco, sujo e largando os pedaços”.

Quando o fantasma acabou de falar, tive pela segunda vez a impressão de ver a pera alva à Benjamin Constant, desta feita movendo-se numa suave ascensão em direção ao antigo IAPI.  

“O comendador foi embora?” perguntei ao fantasma.

“Não, meu ínclito. Ele foi dar uma lobrigada dentro do pardieiro para verificar o estado em que se encontra internamente. E já vem de volta. E pela cara que está fazendo não gostou nada do que viu. Vamos ouvir o que tem a nos dizer.”

O diálogo que se travou então entre o comendador e o fantasma do centro de Vitória me fez viver momentos do outro mundo. Eu estava no meio deles, sem ver o comendadar e sem ouvi-lo, mas tomando cohecimento do que diziam pela prosopopeia do fantasma meu amigo.

“Está pior do que por fora?”, perguntava o fantasma. “Sujo e degradado? Uma caca? Você disse uma caca, meu dileto amigo?” E voltando-se para mim: “O comendador, écoute-moi, disse que o prédio virou uma caca, palavra que eu nunca tinha ouvido em sua boca. Escutou a amarga risada que ele deu?”

A risada que eu ouvi lembrava um escapamento de ar comprimido, se consigo ser fiel à impressão que me causou. 

“Ele acabou o seu relato sobre a caca?”, perguntei, doido por me livrar da situação desconcertante em que me encontrava, perdido numa conversa de fantasmas em plena praça pública.

“O comendador continua expressando sua máxima indignação pela existência de uma espelunca aruinada como essa, quase em frente ao busto de Florentino Avidos”, repondeu o fantasma. “Está dizendo que é uma injúria à memória do governante que modernizou Vitória, no mais profícuo governo que o Estado já teve. Mas, epa lá, meu caro Deodato! (ressalvou o fantasma do centro de Vitória dirigindo-se ao comendador) Porque para mim a qualificação de governo mais profícuo deve ser reservada exclusivamente para o do incomparável Jerônimo Monteiro”.

O comendador não deve ter gostado da ressalva que ouviu, tanto que, pelo que pude perceber, os dois se entregaram a um pega político em defesa dos seus pontos de vista divergentes, o que me permitiu sair daquela rinha de galos de briga antes que o comendador engrenasse para cima de mim com a prometida história da visita de Júlia Lopes de Almeida a Vitória.

Quando me afastava de fininho ainda pude ouvir o fantasma do centro histórico bradar, enérgico e agitado, defendendo as realizações de Jerônimo contra as de Florentino: “água encanada, esgoto e luz elétrica botam no chinelo as Cinco Pontes e a Avenida Capixaba! No CHI-NE-LO! Écoute-moi, mon ami, écoute-moi!” No chi-ne-li-nho!”

 

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