A Academia Literária dos Mortos

Todo escritor que se preza é um candidato em potencial à Academia Literária dos Mortos. Basta que morra.

Mas não basta estar morto para entrar na academia. Três requisitos devem ser preenchidos para o almejado ingresso: 1º) que o candidato tenha uma obra inédita, pendente de publicação póstuma; 2º) que exista cadeira vaga dentre as quarenta que compõem o panteão da academia; 3º) que o pretendente seja eleito para o lugar deixado pelo último imortal que abriu a vaga.

Não são requisitos de fácil atendimento. A dificuldade começa pelo primeiro deles. Como o candidato à academia literária dos mortos já está morto, a publicação da obra de sua autoria dependerá da iniciativa da viúva (se foi casado), ou de parentes e amigos (se os tiver), ou ainda, e mais excepcionalmente, de uma instituição cultural que avoque a ideia e a execute. É providência que foge ao controle e à vontade do falecido, mesmo que possa ter deixado originais com a recomendação expressa de serem publicados somente depois de sua morte.  Nessa categoria se incluem, em geral, os diários e as obras confessionais, muitas com prazo de carência a ser observado antes de divulgadas, em respeito a possíveis referências depreciativas a pessoas vivas. Apesar disso, e mesmo que o escritor falecido chegue ao extremo de constituir um fundo de reserva financeira para ser utilizado post-mortem na publicação da obra, se não houver o empenho de alguém, no mundo dos vivos, para que a publicação aconteça, o ingresso na Academia Literária dos Mortos ficará eternamente prejudicado. E, para quem se foi na esperança de que seus escritos tivessem a publicação desejada, deve ser frustrante não ter suas pretensões levadas a cabo, além de se ver tolhido em definitivo em sua aspiração de entrar para o cenáculo literário dos mortos.  

O segundo requisito para ingresso na academia – a existência de vaga no quadro das cadeiras acadêmicas -, se à primeira vista possa parecer impossível de ser satisfeito por serem tais cadeiras ocupadas por imortais perpetuamente mortos, na verdade encontra-se regulado por dispositivo estatutário que obriga todo acadêmico a ceder o seu assento a outro escritor, depois de ocupá-lo pelo prazo máximo de quarenta anos (a renúncia antecipada é tida como gesto de grandeza d’alma, raro de acontecer). Conhecida entre os imortais como a norma da quarentena (40 é um número cabalístico no seio das academias, talvez por influência da velha história de Ali Babá), sua aplicação permite o dinâmico e democrático rodízio na renovação dos membros da instituição, dando oportunidade às novas gerações de escritores falecidos de adentrarem os umbrais tão ambicionados. Esta condição foi consagrada pelos quarenta fundadores e automaticamente patronos da academia que, depois de cumprirem, cada um de per si, o prazo da quarentena e em rigorosa ordem alfabética, se obrigam a ceder a vez aos novos ingressantes na instituição. Ganham assim os escritores mortos e ganha a academia que se renova em membros e talentos!

Finalmente, a eleição do candidato, terceira condição a ser superada desde que, obviamente, atendidos os dois requisitos anteriores, impõe-se como tarefa trabalhosa. Caberá ao interessado recorrer a cada acadêmico morto – ou à maioria deles – numa verdadeira cruzada de morto a morto (ou de túmulo a túmulo), para cabalar os votos que lhe assegurem a eleição ou lhe garantam o apoio para derrotar qualquer competidor que se apresente com idêntica aspiração. E mesmo sendo o caso de uma candidatura única (raríssimo de se verificar), é preciso saber conquistar a simpatia dos disputados eleitores. Por outro lado, se forem muitos os competidores, cada qual mais ansioso em se tornar acadêmico depois de morto (está sempre morrendo um intelectual que se julga com tal direito, alguns até para conservar o status de imortalidade que tinham em alguma academia de que faziam parte quando vivos), a disputa entre eles adquire foros de embate metaforicamente mortal. Torna-se um vale-tudo de agrados melífluos e mesuras sorridentes junto aos acadêmicos eleitores, numa peregrinação de convencimento em favor dos pretensos créditos de cada pretendente à vaga disponível. E, como não será mais exigida dos candidatos a apresentação de curriculum vitae para ser julgado por uma comissão de imortais investida de plenos poderes decisórios - coisa que ficou para trás no mundo dos vivos, tanto quanto ficou o uso do fardão e da medalha de honra a que fazem jus os acadêmicos para pendurar no peito -, o que passa a valer na acirrada corrida entre os disputantes mortos é a capacidade de persuasão e convencimento de cada um junto aos seus possíveis eleitores. Tudo fazendo parte do jogo eleitoral na busca dos escrutínios consagradores. Afinal, a imortalidade acadêmica não está ao alcance de qualquer escritor, sendo necessário muito esforço e dedicação para conquistá-la.

Para os que chegam lá – estamos falando do acesso a uma academia literária de mortos, não se esqueçam - é voz corrente (entre os mortos, é claro) que vale a pena lutar e vencer. O escritor que duvidar que viva a experiência, depois de morto.

Eu, da minha parte, preferirei viver em paz, sem aborrecimentos e refregas, a apagada imortalidade que me espera.

 

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