Um bate-boca com o fantasma

“Tenho uma boa notícia para você, meu digno”, disse o fantasma do centro histórico de Vitória travando-me os passos no centro da Praça Oito.

“Que notícia é esta?”, perguntei, submetendo-me com paciência a sua interlocução intempestiva, como sempre faço.

“Os meus dias de fantasma estão contados. Em breve, não mais o molestarei com aparições subitâneas. Vou desaparecer para sempre. Sou um fantasma moribundo”.

A princípio, pensei que estivesse brincando. Logo, percebi que falava a sério, prevenindo-me de um fato inexorável com pesada tristeza estampada no semblante valetudinário. Então, pela primeira vez, fitei-o com ternura, e perguntei:

“Você tem certeza do que está dizendo? Sempre pensei que fantasmas fossem eternos...”

“Todo mundo pensa, meu digno. Mas nós, fantasmas, somos entes transitórios, a caminho do nada, quando sumimos de vez. Um sumiço que vai acontecendo gradativamente. Lembra-se de quando você me viu pela primeira vez? Eu era mais completo de conteúdo do que sou agora. Você via até a roupa que eu vestia e a brilhantina que usava no cabelo. E o meu chapéu de palhinha também. Hoje, o desaparecimento me consome a olhos vistos. É inevitável. Começo a me sentir caquético”.

“Como você sabe que o fim está próximo?”, perguntei com a voz ligeiramente embargada.     

“Saber não sei, porque não se tem certeza nestes casos. Mas pressentem-se os sintomas”.

“Quais?”

“Manifestações sutis, nem sempre muito claras. Mas a última que eu tive foi... atordoante!”

“Alguma dor insuportável?”

“Não, meu digno, foi uma forte tontura quando passei sobre o Penedo, mas o bastante para que perdesse altura e quase caísse ao mar. E enquanto despencava desvalido das forças incorpóreas que me poupassem de um desfecho fatal, vieram-me à lembrança, numa vertigem instantânea, os versos trágicos de Augusto dos Anjos:

‘Eu sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo
Da substância de todas as substâncias’.

Para um fantasma, uma experiência dessas é um caso grave e incurável. Não queira nunca viver situação semelhante”.    

“Imagino como foi terrível”, apiedei-me dele, tanto pela inesperada despencada no espaço, quanto pelos versos do poeta. “Mas acredito que tudo tenha sido uma insolação passageira”, tentei animá-lo.  

“Ninguém melhor do que você, meu ínclito, para saber que o sol não me causa mossa, nem me afugenta como sói acontecer à maioria dos fantasmas que prefere o soturno das sombras à clara luz do dia. Acometeu-me, sem dúvida, um sintoma de fim de linha”, choramingou meu amigo, felizmente sem lacrimejar pelos olhos opacos.

“Mas afinal, explique-me, o que você foi fazer sobre os píncaros do Penedo?”, indaguei, estranhando seu raide aéreo por aquelas bandas, a exemplo do que fazia o piloto Melo Maluco, na década de 40.

“Passei por lá para relembrar meus tempos de Trianon, escuta só”.

“Mas, meu caro fantasma, o Trianon ficava em Jucutuquara... Se esqueceu do endereço?”, contraditei-o crente de que ele também tivesse tido, além de um lapso de voo, um lapso de memória.

“Não estou falando do cine Trianon, meu digno. Este é do seu tempo. Refiro-me ao cassino Trianon, que funcionava onde está hoje o ex-clube Saldanha da Gama, em frente ao Penedo. Um cassino que marcou época, onde a boemia e a rapaziada de então – embora eu já fosse um boêmio quarentão, naqueles dias – via chegar a madrugada jogando bacará, bebendo vermute e dançando foxtrote com polacas importadas. Áureos tempos, áureos tempos!

“Em que ano foi isso?”

“A partir de 1925, quando o cassino foi inaugurado. Uma época de muitas transformações em Vitória, com obras por toda parte. Quem fundou o cassino foi meu amigo Sandoval. E quem estava na presidência do Estado, quem?”, testou-me o fantasma com um esgar de boca que eu deveria interpretar como sorriso.  

“Florentino Avidos!”, respondi de imediato.

“Pelo amor de Zeus, meu ínclito, dê a resposta euforicamente. Diga de boca cheia, em dicção ribombante: quem governava o Estado do Espírito Santo era o grande Florentino Avidos. Porque, em minha opinião, ele só perde em realizações para o incomparável, o imortal, o revolucionário Jerônimo Monteiro. E você sabe como se ia ao cassino Trianon? De bonde, meu digno, de bonde! E depois das 22 horas, quando o último bonde recolhia à garagem da Convertidora, na rua Sete de Setembro, era a pé que se voltava para o centro da cidade. A rapaziada voltava em grupos de três e quatro, borrachos e alegres, tropicando nas pernas bambas. Você não sabe o que perdeu, por não ter vivido aquela época!”.  

“Em compensação, vivi os tempos do cine Trianon, que o Delanos construiu em Jucutuquara”, gabei-me de peito inflado e sorriso desafiador preso nos lábios.

“Ka, ka, ka, ka”, grasnou o fantasma num gargalhar debochado, despejando um marolão de hálito malcheiroso na minha cara. “O seu Trianon, escuta só, não passava de um cinematografozinho de bairro, eis o âmago da questão. Ele não chegava aos pés do meu Trianon, num ponto nobre de Vitória, diante do mar, vis a vis com o Penedo! É dele que estou falando! Um senhor cassino, elegante e refinado. Não queira compará-lo com um... com um armazém tipo caixote onde passavam fitas para uma população de subúrbio! Eu tenho carradas de razão quando protesto!”     

“Espera lá, fantasma! Uma população de subúrbio, uma vírgula!”, reagi rispidamente pelo muito que o Trianon representou para mim e minha geração, esquecendo-me de que, ainda há pouco, me condoera com os sintomas que anunciavam o breve desaparecimento do meu amigo. Para reforçar o contra-ataque, trinei ainda, num cacarejar professoral: “Os filmes do Trianon provocaram uma revolução cultural em Vitória. Marcaram época e encheram os olhos e as almas dos apreciadores do cinema europeu, até então desconhecido entre nós. Este é o cerne da questão, como você gosta de dizer”.

“Âmago”, corrigu o fantasma.

 Âmago ou cerne dá no mesmo. O que estou ressaltando é que Vitória inteira ia ao Trianon. Se você não sabia disso, fique sabendo, nem que seja depois de morto!”

“Vitória em inteira coisa nenhuma!”, veio o troco. “Eu, por exemplo, nunca pisei lá!”

“Você está dizendo que nunca entrou no Trianon?”, interroguei-o incréu, sabendo que ele tinha falecido por volta da década de 60, quando o Trianon ainda estava atuante.

“É o que eu digo. Nunca me dei ao trabalho de sair do centro de Vitória para ver filmes que além de feitos numa Europa cansada de guerra, eram passados em Jucutuquara! Você conhece um locativo tão medonho quanto este? E veja que jucutuquara é corruptela do abominável jucurutuquara que, em língua de índio, pelo que me lembro, significa buraco da coruja. Uma palavra que tem dentro de si cinco us - a mais feia de todas as vogais da última flor do Lácio, inculta e bela! Já pensou que você poderia ter dado o azar de ser um jucurutuquarense se tivesse nascido ou morado naquelas bandas? E você ainda queria que eu tivesse ido a um cinema naquele buraco? (À medida que falava, a voz do fantasma se esganiçava). Para ser sincero, depois dos filmes mudos, eu nunca mais fui ao cinema, no que fiz de muito bem. A arte da interpretação cinematógrafa morreu com o cinema mudo, eis o âmago da questão. Você se lembra da cena de Harold Lloyd pendurado no ponteiro do relógio, na fita O homem mosca? Não, você não se lembra porque não é do seu tempo! O seu tempo é o do Trianon de Jucurutuquara, ka, ka, ka, ka... A cena de Lloyd é hilariantemente fantástica e inimitável! Quando a vi pela primeira vez, escuta só, eu estava tocando a pianola do Melpômene, e perdi o fio da melodia, de tanto rir. Sabe que eu tocava duas vezes por semana, durante as fitas do Melpômene? Tocava por diletantismo. E você, meu digno, tem a petulância de vir me achacar com o cine Trianon? Pois ao seu Trianon eu replico com o Melpômene, uma pérola de construção em pinho-de-riga!”  

Tive vontade de retrucar à espinafração recebida que, com pinho-de-riga ou sem pinho-de-riga, o Melpômene não passava de um galinheiro, comparado com o Trianon, mas estrangulei a tempo a grosseria cultural, indigna de ser verbalizada, e fui à tréplica por outro caminho, mas no mesmo cacarejar professoral de antes:

“Longe de mim desmerecer o cinema mudo, que teve seu tempo de glória, como o Melpômene teve o dele. Mas ficar preso aos filmes mudos foi um exagero de passadismo que compromete sua imagem até como fantasma. Que você preferisse o cassino Trianon ao cine Trianon, eu compreendo. Mas não deprecie o Trianon-cinema, mesmo que não tenha posto lá o seu respeitável traseiro”.  

O fantasma articulou uma careta de quem ouviu e não gostou e respondeu, numa lambada final:

“Continuo achando que eu é que estou com a razão. Prefiro o meu Trianon ao seu porque se eu tivesse me tomado de amores por ele, como aconteceu com você, talvez ao voejar sobre Jucutuquara para matar velhas saudades, acabasse escorraçado por alguma coruja bairrista que me faria desaparecer para sempre antes da hora”.

Com estas palavras, que puseram fim ao nosso bate-boca, o fantasma desvaneceu-se diante dos meus olhos.

“Será que apagou para sempre?”, assaltou-me a dúvida, acompanhada de um profundo desconforto com o infeliz desvio de rota que nossa conversa tomou.

“De agora em diante tenho que manter a calma com este moribundo”, assumi o compromisso. “Se ele aparecer de novo, é claro, vindo de outras eras, pólipo de recônditas reentrâncias, como diria Augusto dos Anjos.”

 

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