O fantasma e o circuito cultural pelo centro de Vitória

O projeto tinha nome expressivo: Circuito Cultural pelo Centro Histórico de Vitória, sucintamente chamado CIRCULCHIVIT, sendo eu um dos circulchivites dele participante.

A rigor, eu era o circulchivit-senior, guindado à gerência cultural do projeto graças à minha condição de historiador, incumbência que aceitei sem que até hoje saiba explicar a razão. Vaidade intelectual? Motivação pedagógica? Bisonhice de macróbio? Talvez por todos esses motivos reunidos.

Mas continuemos.

Logicamente, se havia o circulchivit-senior, havia os circulchivites-juniores, compreendendo um grupo, por mim pessoalmente selecionado, de vinte e cinco estudantes do Ensino Fundamental, classificados pelas melhores redações (na verdade, as menos piores) sobre o originalíssimo tema Por que me orgulho de viver na cidade de Vitória. Os classificados receberiam tablets de brinde, motivo da grande afluência de candidatos que concorreram ao certame.

A iniciativa do projeto coube à Rede Guananira de Televisão, com o lauto (e bota lauto nisso!) patrocínio financeiro de uma empresa exportadora de granito e mármore, extraídos a dentadas férreas das interioranas pedreiras capixabas.

Quanto à função do circulchivit-senior (ou seja, a minha função), compreendia três tarefas essenciais: 1ª) ler e selecionar sozinho, dentre trinta e seis mil quinhentas e sete redações apresentadas (que foi o contingente de estudantes interessados nos tablets), as vinte e cinco mais originais e bem escritas (tarefa das mais difíceis devido ao baixo nível de escolaridade dos jovens concorrentes); 2ª) no dia do aniversário da fundação de Vitória, 8 de setembro, percorrer a pé o centro histórico da cidade na companhia dos concorrentes premiados, todos nós vestindo camisetas com a logomarca da empresa patrocinadora (os dentes de uma escavadeira triturando uma laje de pedra), num circuito transmitido ao vivo pela Televisão Guananira, enquanto o circulchivit-senior, quer dizer, eu,  explanaria para os circulchivites-juniores e, de tabela, para os habituais telespectadores da emissora, a história dos principais monumentos do centro histórico de Vitória; 3ª) finalmente, caberia ao circulchivit-senior, para fechar com êxito sua participação no projeto, escrever uma introdução histórica com cerca de trinta mil caracteres para publicação em um opúsculo que reuniria as vinte e cinco redações premiadas, com lançamento a ser feito no auditório da Televisão Guananira em solenidade pública em que tocaria ainda ao circulchivit-senior resumir, no tempo inexcedível de cinco minutinhos, o texto elaborado para o livreto publicado. Em contrapartida, o diligente circulchivit-senior, sem fazer jus a um maravedi de mel coado (nem a tablet nenhum), teria direito ao honroso crédito nominal pela sua laboriosa colaboração para o sucesso do projeto, bem como a receber gratuitamente cinquenta exemplares da plaqueta com as redações dos estudantes vencedores.

Assim programado, assim foi feito.

No dia do circuito, o ponto de partida foi o Convento de São Francisco - dos monumentos históricos de Vitória o que fica mais alto na cidade alta. Ali, o circulchivit-senior abriu o verbo para os estudantes agrupados ao seu redor, enquanto a reportagem da TV, num picolê ao vivo, corria de um lado para o outro, fazendo tomadas abertas e fechadas.

E falou ele, quer dizer, eu, da chegada a Vitória, no século XVI, dos primeiros franciscanos que no governo da capitoa ou capitã Luiza Grimaldi edificaram o convento, na aba do morro onde se acha posto e exposto. E falava com a desenvoltura e animação que competiam a um competente circulchivit-senior, quando se lhe apareceu aos olhos, como intruso malvisto e indesejado em meio à estudantada desatenta, o fantasma do centro histórico de Vitória, sendo, porém, e felizmente, apenas visto e ouvido pelo orador eloquente, além de ficar totalmente imune à captação visual da ágil câmara da TV, nos sucessivos takes abertos e fechados.

“Eia! Sus, meu digno! Você está se saindo muito bem. Mas não se esqueça de falar mal do padre Leandro Del’Uomo”, soprou-me o hálito abjeto do fantasma, numa achega que prontamente incorporei a minha explanação por conhecer a irritante insistência com que o proponente costuma defender suas propostas. 

Foi assim que os circulchivites-juniores e os espectadores da TV Guananira ficaram sabendo que foi o padre Leandro o autor das demolições e reformas (que muitos historiadores reputam um ato de vandalismo) introduzidas no convento quando nele criou o Orfanato Cristo Rei, a ponto de dar até sumiço à sepultura de frei Pedro Palácios, o iniciador do culto de Nossa Senhora da Penha no Espírito Santo, cujos ossos tinham sido trasladados para o cemitério do São Francisco.

Na parada seguinte, diante da capela de Santa Luzia, novamente o fantasma meteu o bedelho onde não era chamado, interferindo na oratória do circulchivit-senior para que ele não deixasse de mencionar que desde que a igrejinha tinha sido construída por Duarte de Lemos, tornando-se o monumento histórico mais antigo de Vitória, a devoção à Santa se fizera tão popular entre os capixabas que, todo dia 13 de dezembro, que lhe é dedicado, uma concorrida procissão percorria as ruas da cidade numa tradição que irremediavelmente se acabou. “I-rre-me-di-a-vel-men-te é o termo!”, frisou o fantasma, e o circulchivit-senior o repetiu escandindo o advérbio e imitando inclusive o sotaque lúgubre do fantasma, mas sem o seu mau hálito escabroso. 

Em passadas seguintes, pararam todos os excursionistas, o fantasma agora à vontade no meio deles, defronte da igreja de São Gonçalo Garcia, construída no século XVIII pela tradicional Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção.  Foram recebidos ali pelo sino vibrando em repiques de alegreto, encomenda prévia dos organizadores do projeto.

A badalação festiva estimulou o circulchivit-senior, que discorreu acaloradamente (parecendo até um conspícuo irmão da Irmandade da Boa Morte e Assunção) sobre a história da igreja e da confraria mantenedora do templo, salientando sua importância social e religiosa para a população de Vitória, ao longo de sua existência.

“Fala das pedras pé de moleque da rua São Gonçalo”, gritou o fantasma do centro histórico de Vitória, reforçando a sugestão com gestos chamativos para atrair a atenção do expositor que, mais uma vez, cedeu à pressão fantasmática e explicou, para conhecimento dos circulchivites-juniores que a rua do São Gonçalo tinha sido calçada antigamente com pedras irregulares e desconexas, que lembravam as cocadas pé de moleque feitas com amendoim e calda de açúcar. “Só não serviam para comer”, disse o circulchivit-senior provocando a hilaridade dos circulchivites-juniores.    

A intromissão seguinte do fantasma se deu diante do Palácio Anchieta. “Não perca a oportunidade, meu digno, de propor que o nome do palácio seja mudado para Jerônimo Monteiro, que o elevou à condigna condição de sede do governo do Estado, graças às reformas feitas no histórico colégio jesuítico! Aproveite que você está falando para a TV e pregue com entusiasmo a mudança que se faz tardia!”

Era querer demais do circulchivit-senior que, por conhecer de longa data a descabida ideia-fixa do fantasma, franziu severamente o sobrolho denotando sua máxima contrariedade com a impertinência que acabava de ouvir.

O fantasma captou a mensagem de aborrecimento que lhe foi transmitida e, com um bufido de decepção, saiu de cena, na qual, e ainda bem, sua presença incômoda ficou imune às tomadas abertas e fechadas da TV Guananira que, se porventura o tivesse flagrado no circuito cultural, embora sem a camisa com a marca da empresa patrocinadora, teria logrado o maior furo de reportagem da sua história. E, é bom que se diga: sem despender um maravedi de mel coado pelo direito de imagem do fantasma, se a tivesse levado ao ar.

 

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