Compromisso com o fantasma

Antes que eu terminasse de subir a escadinha do Instituto Histórico e Geográfico, o fantasma do centro de Vitória me agarrou pela canela - experiência nada agradável a de sentir o friúme gelatinoso da mão de um avantesma irradiando um calafrio mórbido pelo meu corpo, mesmo às quatro horas da tarde de uma quarta-feira de radioso sol de verão.

- Nem mais um degrau acima sem ouvir o que tenho a dizer.

- Desse jeito você me mata de susto... – protestei.

- Desculpe-me, meu ínclito, mas preciso da sua opinião.

- Quem sou eu para dar opinião a um fantasma! – brinquei.

- Falo sério – respondeu. – Preciso ouvi-lo porque o assunto lhe diz respeito.

- A mim...? – indaguei recuando para a defesa.

- Deixe-me explicar. Outro dia eu me deparei com Afonso Cláudio, na praça Costa Pereira...

- Com o busto dele? – interrompi sem maldade.

- Não, meu digno. Com o próprio Freitas Rosa que chamou a minha atenção, em velado tom de reprimenda, para o fato de ser apenas a você, e a ninguém mais, a quem eu reservo minhas assíduas aparições. Na opinião dele, dada com muita fineza e cavalheirismo, outros historiadores do Estado mereceriam também o privilégio de ouvir as informações históricas com que eu o premio em nossos tête à têtes, porque pode ser para eles de grande valia. Chegou a dizer – perdoe a franqueza – que muitos desses historiadores talvez aproveitassem as informações com mais competência do que você, para estudos e ensaios sobre o nosso rico passado histórico. E citou nomes, todos seus confrades aqui do Instituto. A um deles, escuta só, pessoa excelentíssima que preside a Casa com abnegado dinamismo, eu, que não costumo me distanciar do centro histórico de Vitória, já tive a oportunidade de aparecer na extinta Livraria Logos, na Praia do Suá, tendo sido muitíssimo bem recepcionado. Mas foi caso excepcional. Fiquei tão cismado com o que disse Afonso Cláudio que resolvi ouvir você a respeito da sugestão que ele me deu.

- Da minha parte, meu caro fantasma, dou-lhe toda liberdade para estabelecer contactos com quem quiser, sejam historiadores ou não – respondi satisfeito, pois se o fantasma se consorciasse com outros viventes me pouparia da frequência das suas agarradas, sobretudo quando me pegava pelo pé.

- Neste caso, meu digno, eu agradeceria se você me apresentasse aos seus confrades do Instituto... Temo assustá-los se lhes aparecer sem prévia preparação psicológica, o que não é minha intenção. Quem sabe você possa fazer isso agora mesmo? 

Tinha que sobrar para mim! – pensei retido na escadinha estreita.

O fantasma do centro histórico de Vitória se encontra com Afonso Claudio, que lhe faz uma sugestão que para mim é uma dádiva, mas a prebenda que daí resulta - a de estabelecer a aproximação entre ele e outros membros do Instituto - acaba estourando nas minhas costas. E teria que ser naquele dia e naquela hora, para satisfazer a obsessão do meu amigo do outro mundo. Era pedir muito e procurei criar uma porta de emergência para escafeder-me através dela.

- Não me parece que seja hoje o dia apropriado, meu caro fantasma, porque teremos nesta tarde uma sessão solene, com a presença de várias autoridades. Até os secretários de Educação e da Cultura prometeram vir.  Vê por que estou de terno e gravata? Mas prometo me empenhar junto ao presidente do Instituto, a quem você já conhece pessoalmente, para a convocação de uma sessão extraordinária - porque há de ser extraordinária e extra estatutária -, para a sua première aparição aos nossos consociados. Eu mesmo me incumbirei das apresentações, deixando você à vontade para se tornar íntimo de todos eles, graças à simpatia e fluência que lhe são peculiares. Já estou até pensando em quem serão os convidados... Pode ser assim?

O fantasma topou a proposta, mas estabeleceu duas condições: que os escolhidos saíssem da nata dos historiadores da Casa, e que ele abrisse o encontro com uma palestra para mostrar a versatilidade dos seus conhecimentos sobre a história do Estado.

- Não quero que pensem que sou um intrujão sem eira nem beira.

Achei razoável o seu escrúpulo e indaguei se tinha preferência por algum tema em particular. Ele refletiu e disse:

- Muito me aprouvera falar sobre a rivalidade entre peroás e caramurus, no século XIX em Vitória. O que você acha?

- Sinceramente, não me agrada o tema, já muito batido e até recorrente em nossos encontros. Minha sugestão é outra, mais compatível...

- Desde que você não me peça para falar sobre Domingos Martins, que pode ser herói lá em Caxangá, onde nasceu, mas não fez nada de grandioso pelo Espírito Santo tendo pretendido a independência do Brasil por interesses contrariados de comerciante abastado! Nem sei por que é tão enaltecido no Estado e se tornou patrono deste nobre sodalício onde agora estamos! – atalhou o fantasma, que não abria mão de suas convicções idiossincráticas em relação ao herói da Revolução Pernambucana de 1817.

- Aliás – prosseguiu na diatribe – no último dia 12 de junho, na comemoração do centenário desta nobre instituição, eu fui dar uma bisbilhotadinha na cerimônia realizada na praça João Clímaco, diante do busto de Bem Bem (sabia que o apelido de Domingos Martins era Bem Bem?), que reuniu diversos membros desta Casa. Você, que estava lá, só não me viu porque fiquei camuflado numa moita de tinhorão, mas vi e ouvi tudo o que se passou ali, inclusive a grandiloquente alocução dirigida ao busto do homenageado. O fantasma dele, que também apareceu na solenidade, inchou de orgulho o fero peito com os encômios recebidos a ponto de tornar visíveis para mim as horríveis cicatrizes dos tiros que o abateram no campo da Pólvora, pouco faltando para repetir a frase desabrida “morro pela liber...” É nisso que dá um Estado carente de heróis, eis o âmago da questão! 

Na escadinha apertada do Instituto Histórico em que me encontrava não me pareceu oportuno nem cômodo rebater, com argumentos sólidos e arrasadores ao meu alcance, a heresia histórica cometida pelo fantasma contra a obra e a memória de Domingos Martins. E sobre a alegada deficiência de heróis no Espírito Santo poderia tê-lo esbagaçado com a simples menção do Caboclo Bernardo e Chico Prego, e da audaz e mítica Maria Ortiz representando a seção feminina do glorioso panteão de heróis e heroínas capixabas. Mas devido ao adiantado da hora e à impropriedade do lugar em que nos encontrávamos preferi evitar o entrevero que certamente nos enroscaria numa polêmica indigesta para voltar ao que estávamos conversando.

- O tema que eu ia sugerir para a sua palestra, meu caro fantasma, é a história dos cemitérios de Vitória. Tenho certeza que lhe cai... a caráter.

- Muito me apetece a sugestão, meu digno – disse o fantasma batendo palmas das quais só vi os gestos sem ruído. – É realmente tema compatível com o meu basto conhecimento histórico e pode anunciá-lo o quanto antes. Ao destrinchá-lo, escuta só, falarei também do grande e admirável Jerônimo Monteiro, em cujo governo o cemitério de Santo Antônio foi inaugurado. Os mortos eram levados no bondinho funerário, lembra-se dele? Uma espécie de trolei ou coche, criado especialmente para esse carregamento. Era rebocado pelo bonde em que iam os amigos e parentes dos falecidos...

- Espera aí, meu caro fantasma! Você não vai iniciar sua palestra só para mim, aqui nesta escadinha desconfortável, vai? – interceptei-lhe a efervescência antes que fosse tarde.

- É verdade, meu digno! Tanto me aprouve o tema que já me lancei a esmiuçá-lo. E foi apenas leve amostra do que tenho a dizer. Portanto, marque a palestra e me avise dia e hora, que me farei presente. E vou falar de improviso, porque não tenho como escrever o meu discurso!

Quando pensei que nosso encontro tivesse terminado e que pudesse retomar a subida interrompida, o fantasma pairou no ar, e perguntou:

- Posso convidar Afonso Cláudio para assistir a minha explanação?

- Será que ele gostará de vir? – indaguei querendo poupar o ilustre republicano de um sacrifício dispensável.

- Graças a ele, que por sinal foi um dos fundadores desta centenária Casa, é que tivemos este colóquio proveitoso – retrucou o fantasma. - Além disso, você não pode esquecer que foi no governo dele que o Estado adquiriu a área onde o cemitério de Santo Antônio foi instalado...

- Três fortes razões para convidá-lo – acedi derrotado. – E será recebido com honras de sócio fundador e ex-governante de Estado, com direito de assento à mesa.

- Eu tenho que vir de terno? – ainda quis saber meu prolixo interlocutor.

- Venha como estiver. Só não venha nu – disse eu, provocando-lhe cavernosos frouxos de risos que espero não tenham assombrado o seleto público que já lotava o auditório Renato Pacheco, para onde me dirigi antes que fosse tarde.

 

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