O fantasma e o Palácio do Governo

Eu fui ver uma das estátuas da escadaria do Palácio que tinha sido restaurada depois que vândalos a decapitaram, numa baderna pública e, para meu azar, o fantasma do centro histórico de Vitória teve a mesma ideia, me pegando em sua rede.

“Monsieur Norbert deve estar satisfeito com a restauração”, disse ele. “Sabe quem foi Justin Norbert?”

“Foi o engenheiro francês que reformou o Palácio do Governo, no tempo de Jerônimo Monteiro”, arrotei conhecimento.

“E que também projetou esta escadaria, não se esqueça deste mérito”, disse o fantasma. “Ela deu imponência ao palácio, como se fosse seu pedestal. Sabia que tive a honra de alojar monsieur Norbert em minha casa, no n° 5 da ladeira Pernambuco, enquanto esteve em Vitória a serviço do Estado? Nessa época eu era coadjuvante de ordens do presidente Jerônimo Monteiro, com quem trabalhei no salão dos despachos governamentais. Aposentei monsieur Norbert, como se dizia antigamente, a pedido do presidente, que preferiu que ele se acomodasse em minha casa a ficar em qualquer hotel. Graças a essa hospedagem pude aprimorar o meu francês no meu próprio domicílio.Monsieur Norbert era a simplicidade em pessoa e foi notable a facilidade com que se familiarizou com os usos e costumes de Vitória. Basta dizer que se fez adepto dos peroás...” 

“Certamente por influência do peroá obstinado que você sempre foi”, ressaltei.

O fantasma soltou uma risadinha sensibilizada, porém fétida, e esclareceu: “Não me referi ao partido dos peroás da igreja do Rosário, a que pertenci com honra suprema. Referi-me aos peroás fritos que monsieur Norbert ia comer nos quiosques do porto dos Padres. Un poisson  dèlicieux, dizia ele, os olhos azuis luzindo de prazer. Eu acabei incluindo os peroás no menu dos saraus que se realizavam na minha casa, enquanto ouvíamos árias no gramofone de monsieur Norbert”.     

“Ele tinha um gramofone?” indaguei de imediato.

“Um dos primeiros gramofones que Vitória conheceu”, disse o fantasma cheio de etérea vivacidade, como se fosse o dono do aparelho. “Venha aqui para a sombra que vou lhe falar do gramofone”, disse ele ameaçando me puxar para uma nesga sem sol, na escadaria do palácio. 

Tendo suscitado a questão, cabia-me tolerar as consequências da minha imprevidência, e o jeito foi segui-lo.  

“O gramofone veio encaixotado do Rio de Janeiro, quando monsieur Norbert chegou a Vitória, no trem da Leopoldina”, retomou o fantasma o fio da meada. “Era de se ver o carinho que ele devotava ao aparelho. Eu o coloquei num lugar nobre, na minha sala de visitas, cercado pelos retratos de moldura oval dos meus antepassados, pendurados nas paredes de pé-direito alto. Ali nós fazíamos nossas reuniões semanais para apreciar as árias cantadas pelo grande Caruso e pela admirável Nellie Melba”. 

“Nós, quem, além dos seus antepassados?”, não perdi a pergunta.

“Boa indagação, meu digno. Éramos poucos, mas formávamos um naipe de amantes da ópera: eu; monsieur Norbert; naturallement meu dileto amigo, o comendador Deodato, que denominou as reuniões de saraus hebdomadários e fraternos; Dr. Jeffroy, que também se dava ao canto operístico com sua voz de tenor; André Carloni e o professor Gomes Cardim, que não faltavam nunca; e... quem mais, meu Deus? Ah, sim, o maestro Colombo Guardia, quase me esquecia dele. Ouvíamos os cantos líricos bebericando vinho Bordeaux e saboreando peroás fritos, sem dúvida um atentado aos paladares refinèes, mas ao gosto do dono do gramofone. Au bon vin, au bon perroá, bradava esticando com satisfação os fios do bigode e os erres de peroá. Eram peroás feitos por encomenda no quiosque do português Florêncio, trazidos pelo moleque Tião, que manquitolava de uma perna, não me lembro se da direita ou da esquerda, e que fazia biscates para as famílias de Vitória, como rachar lenha com machadinha para uso nos fogões, comprar carvão para os ferros de passar roupa, encerar assoalho das casas com escovão e cera Parquetina. Houve até um episódio hilariante numa das entregas dos peroás. Estávamos todos ouvindo a soprano Nellie Melba cantar Mimi, da ópera La Bohème, de Puccini, quando o pobre do Tião, que havia se atrasado, entrou assustado pela sala de visitas equilibrando nas mãos, com certa dificuldade, a bandeja dos peroás. Ainda me lembro de suas palavras envergonhadas quando nos deparou em concentrada bem-aventurança orfeica: ‘Me adescurpe, seus dotôs, mas pensei que tinha arguém passando mal. Esqueci até que sou manco!’ Prorrompemos todos numa gargalhada única o que deixou o molecote mais desconcertado ainda”, disse o fantasma rindo gostosamente, revivendo o episódio.  

Da minha parte, não pude deixar de rir também e com tanta força que só podia distinguir a minha gargalhada da gargalhada do fantasma pela ausência de mau hálito, na minha, é óbvio. Quando me controlei, disse amigavelmente: “A conversa está boa, mas tenho de ...”

Ele não deixou terminar a frase: “Tenho coisa nenhuma, meu digno! Antes que se vá quero aproveitar este encontro para lhe atribuir uma incumbência à altura do seu nome”. E num gesto que lhe era típico, esticou o dedo lívido até o Palácio Anchieta, que sobressaía majestoso acima da escadaria, dizendo: “Temos que nos empenhar numa campanha sem tréguas para mudar o nome do palácio para Jerônimo Monteiro!”

 Ao ouvir suas palavras, arregalaram-me os olhos e por que não dizer, também a boca. “Você perdeu o juízo, fantasma? Esta é uma missão impossível. Foram os jesuítas que, desde Afonso Brás, construíram a igreja e o colégio de São Tiago, origem do palácio; o padre Anchieta, por sua vez, foi o mais notável jesuíta do Espírito Santo, sendo sepultado na igreja; você mesmo costuma pernoitar algumas vezes no túmulo dele, que ali se conserva como um monumento nobre e sagrado. A proposta que está fazendo raia a heresia”.  

“Eu pernoito lá porque o túmulo está vazio...” rosnou o fantasma tentando se desculpar. “Ainda é cedo para você saber o que é a inutilidade de um túmulo vazio. E o argumento histórico levantado em favor da preservação do nome de Anchieta, dado ao palácio, deixa a desejar. Ouso afirmar que Anchieta não juntou uma ostra para sua construção, não pingou uma colher de óleo de peixe na massa para as obras, não plantou uma limeira, uma videira, nem um ananás sequer, no pomar que os jesuítas cultivavam junto da igreja de São Tiago. E olha que, bom católico que sou, admiro a obra catequética do padre José, máxime agora que virou santo. Mas em relação ao palácio, a atuação de Jerônimo Monteiro foi superlativa. Su-per-la-ti-va, meu digno! Se duvida, acompanhe meu raciocínio e veja se não tenho carradas de razão: quem promoveu a reforma da igreja de São Tiago e do colégio dos jesuítas, conferindo-lhe a dignidade de palácio? Quem se preocupou em trazer de fora do Estado um engenheiro da competência de monsieur Norbert para realizar a reforma? Quem patrocinou o projeto de construção desta escadaria que compõe com o palácio um conjunto de arquitetura monumental? Quem, senão Jerônimo Monteiro, o maior governante que nosso Estado já teve? Este é o âmago da questão, do qual você não pode se esquecer”.

Quando pensei que tivesse terminado, tomou fôlego e prosseguiu em sua logorreia incontrolável. “Denominar o palácio com o nome de Jerônimo Monteiro é ato de reparação histórica que já tarda e você, meu digno, como historiador, deve encampar e liderar. Aja imperativamente pondo mãos à obra: convoca a imprensa; move as instituições culturais; agita as massas em favor da nossa tese! Sei que vai ser uma África, mas eu o inspirarei a cada passo, como se estivéssemos de mãos entrelaçadas! Vamos nos dedicar a esta cruzada gloriosa tendo por meta a Jerusalém de um novo nome, justo e merecido, para o palácio do centro histórico de Vitória!”       

Para arrefecer seu entusiasmo, chamando-o à realidade terrena, procurei ser persuasivo.

“Não digo que não tenha suas razões, nos elogios a Jerônimo. Estaria até disposto a embarcar na campanha ‘africana’ que você quer lançar se o palácio não tivesse nome. Mas o que pretende está fora de cogitação, até porque Anchieta agora é santo, como você mesmo lembrou, tornando o palácio uma espécie de nicho-mor que o acolhe e consagra. Não conte comigo para o que será taxado de campanha iconoclasta.”

“Você não está se esquivando porque foi seu tio, quando governou o Estado, que deu ao palácio o nome da Anchieta, não é mesmo?”

“Não se trata disso. Eu me recuso à empreitada porque a sei de antemão perdida”.

“Quem, então, você sugere para assumir o seu lugar?”

“Nem se tivesse um inimigo mortal, sugeriria seu nome. Reconheça que a oportunidade para a iniciativa está com atraso de mais de cem anos. Por que você não fez a sugestão quando trabalhava com Jerônimo?” 

“Pensa que não fiz? Mas minha proposta foi por ele rechaçada friamente. Eu até insisti por intermédio de Justin Norbert, que gozava da confiança presidencial. Não vingou”.

“Aí está, meu caro”, peguei o argumento pelas orelhas. “O próprio sugerido descartou a homenagem. Portanto, consumatum est o nome de Anchieta. Não escarafunche o que se tornou tradição na história do Espírito Santo”. 

“Isso não me desanima. Morri com a ideia de que o palácio devia se chamar Jerônimo Monteiro e continuo mantendo-a viva em minha mente. É só dar uma cirandada pelo palácio, onde estão expostas inúmeras fotografias das reformas promovidas por Jerônimo, para confirmar a procedência da minha tese. Em algumas fotos eu até apareço acompanhando as obras. Quer ver?”

“Outro dia, meu caro”, disse eu, vendo-o se elevar na direção do telhado do palácio. Terá ido rever as fotos históricas da reforma?  

 

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