O fantasma no Teatro Glória 

Tinha sido uma noite fria, a da véspera, naquele final de junho em Vitória. No sábado, pela manhã, um sol burocrático deu as caras, vindo ao nosso encontro no alto do Teatro Glória, onde nos encontrávamos junto a sua imensa cúpula cor de prata, apreciando o panorama da Costa Pereira.

Éramos um grupo de escritores e escritoras recepcionados pela fidalguia de uma equipe do SESC Glória para um sortido café da manhã, saudável pretexto para que visitássemos as instalações do velho teatro, radicalmente revitalizado num magnífico centro multicultural.

Ao abandonar o espaçoso terraço que virou cobertura do teatro, me ouvi chamado pela voz já minha conhecida, no cacoete inconfundível: “Meu digno, meu digno! Um minuto de atenção!”

Com aquele preâmbulo não podia ser outro senão o fantasma do centro histórico de Vitória, retendo-me onde eu menos esperava que ele estivesse.

- Você aqui, meu caro, no alto do prédio que um dia chamou pejorativamente de obra paquidérmica?  

Com a boa memória que ainda lhe resta o fantasma acusou a espetadela, lembrando-se do encontro (que um dia vou contar), que nós tivemos na noite em que fui à inauguração do SESC Glória e ele me pegou numa conversa interminável, condenando acerbamente a construção do Glória no lugar do Eden Park.        

- Estou aqui porque a noite ontem estava gélida, e fui obrigado a me abrigar na cúpula do teatro, depois de ouvir ontem a descontraída palestra sobre o futebol de Vitória, remontando os áureos tempos do estádio Governador Bley.

À primeira surpresa, juntou-se a segunda: o fantasma do centro histórico de Vitória esteve impercebível no encontro a que eu também compareci para ouvir um cronista capixaba de escol rebuscar, com nostalgia contida e grata, os tesouros futebolísticos de uma cidade mágica. 

- O tema da palestra e seu expositor me atraíram com prevalência sobre quaisquer idiossincrasias pessoais – justificou-se o fantasma. E brincou: - Por muito pouco cogitei de seguir o seu exemplo e fazer uma pergunta ao palestrante. Mas deteve-me o receio de pôr a assistência em debandada.   

- Agiu muito bem – concordei. – E quis saber qual a pergunta que ele calou com prudência dentro do gogó.

- Eu ia perguntar ao ilustre orador, que tanto elogiou o flamenguista Bria como center-half do passado, o que ele achava de João Pedro, center-half do Rio Branco e do escrete capixaba. Aliás, meu digno, esperei em vão que você não só fizesse essa pergunta, como revelasse também que foi colega de João Pedro no antigo IAPC. Você perdeu a oportunidade de contar a história do cartão de casamento que ele pediu que você escrevesse.             

- Como você sabe disso? – perguntei espantado.

- Um passarinho me contou... – disse o fantasma. 

- Um passarinho morto?

- Um passarinho morto que trabalhou com vocês dois no IAPC – esclareceu o fantasma, soltando uma risada literalmente de mau gosto, pelo insuportável bafo propagado.

O fantasma não deixava de ter razão. Eu podia ter posto na fogueira das recordações sobre o futebol e sobre os grandes craques do passado capixaba, minha particular passagem com João Pedro, a quem vi jogar muitas vezes antes de conhecê-lo pessoalmente.

Vivia-se então o tempo em que a escalação dos times de futebol era entoada com a seguinte departamentalização: goalkeeper, beque-direito e beque-esquerdo; half-direito, center-half e half-esquerdo; ponta-direita, meia-direita, center-four, meia-esquerda e ponta-esquerda. A escalação definia a posição tática dos jogadores em seus times e no campo, e colocava o center-half como centro de gravidade de toda a equipe, uma espécie de capitão de bordo entre a defesa e o ataque, ou, como se dizia na época, entre a defesa e a linha, formada pelos cinco atacantes.

João Pedro – grande, sólido, majestoso, a testa larga e plana que lhe permitia cabeçadas dogmáticas com a força de chutaços poderosos nas temíveis investidas sobre a área adversária – era um senhor center-half, verdadeiro rei de congo no umbigo do seu time.

Eu, que o admirava da arquibancada do estádio, vendo-o imperar absoluto dentro do gramado, dei com ele ao meu lado, como fiscal do IAPC – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários, onde trabalhei alguns anos jogando de auxiliar administrativo.

Foi aí que descobri que João Pedro, o gladiador imponente dos gramados capixabas, tinha suas fraquezas instrutivas e seus tropeços ortográficos, a ponto de me pedir, um dia, que escrevesse para ele um texto de felicitações para um cartão do presente que ia dar pelo casamento de uma sobrinha. 

Meio constrangido, mas sem alternativa, atendi ao pedido. Não me lembro exatamente o que rabisquei. Deve ter sido algo ao estilo dos cartões de casamento, uns sinceros parabéns aos nubentes com votos de muitas felicidades pelo enlace matrimonial.

João Pedro leu o que lhe passei, olhou-me do alto de sua figura de estátua viva e me massacrou com o que poderia ter sido uma cabeçada arrasadora, diante do escrito decepcionante e nada poético que lhe entreguei: “Isso eu também sei escrever”.

Era esta a historinha que o fantasma queria que eu contasse. Talvez, se o fizesse, ela pudesse entrar numa outra edição do livro de crônicas das recordações do futebol capixaba, nas décadas de 40 e 50.

Por conta do que não foi contado, o fantasma avançou ainda numa sugestão que considerei excessiva: que eu também fizesse uma palestra sobre o futebol da Vitória de antanho, no SESC Glória.

- Você poderia falar da bola das preliminares, aquele bucho que sobrava de partidas anteriores e era posto em campo antes dos jogos principais – relembrou rindo miasmático. 

A lembrança do fantasma tinha cabimento, posto que sem o poder de me levar a aceitar a ideia da palestra. Porque havia realmente a bola da preliminar e a do jogo principal, diferentes entre si em seus aspectos fisionômicos. A da preliminar - sobra de jogos anteriores - de tanto ser batida e rebatida ficava ruça e pesadona, perdendo os quiques e repiques leves e saltitantes. A do jogo principal, ao contrário, era uma bola nova, cheia de viço e energia, o couro amarronzado e lustroso como castanhola, porque não havia então bolas coloridas, exceto as brancas, reservadas para os jogos noturnos do Governador Bley. O pior era quando a bola principal, que por medida de economia era uma só para cada partida, se via chutada para fora do estádio, porque o jogo prosseguia com a bola reserva que outra não era senão o bucho da preliminar! Até a animação do jogo ficava provisoriamente comprometida, enquanto não se dava o retorno da protagonista titular.

- Só lhe suplico, meu digno – insistiu o fantasma -, que se você vier a falar sobre o futebol daquela época, não o faça no inverno, porque pretendo estar presente sem ter de passar a noite na cúpula do Glória, batendo as mandíbulas de frio.

Dito o quê, foi-se contornando a redoma de prata do teatro. Quando pensei que tivesse sumido, reapareceu para uma conclamação final:

- Não se esqueça, meu digno, de falar também em Misterioso, o controlador do placar do Governador Bley. Não o tenho visto depois de morto.

O lembrete trouxe-me à memória a figura estranha e magricela, de nariz arreganhado como focinho de porco que, empoleirado sobre o teto de entrada da Geral do estádio Governador Bley, tinha a missão unipessoal e imprescindível de marcar os gols das partidas no placar de madeira.     

Quando pensei em dizer ao fantasma que agradecia, mas dispensava a sugestão, ele já ia voando em direção à igreja do Rosário, o que me permitiu retornar ao delicioso café daquela manhã junina.

 

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