Às vezes sim, às vezes não 

Quando o então capitão Vasco Coutinho, afundado em sua rede de embiras, deu a primeira tragada para beber o fumo da erva maldita que lhe custaria mais tarde a excomunhão deitada com mão de ferro pelo bispo Fernandes Sardinha, exclamou em êxtase:

- O Espírito Santo está cada vez melhor!

Era a frase predileta do governador, cacoete verbal de quem acreditava na cria em formação – a capitania do Espírito Santo – estivesse sóbrio ou embalado pelo fumo amargo e malcheiroso, quando a proferia.

Uma frase sem dúvida otimista, que às vezes calhava às circunstâncias, às vezes não.

Exemplos?

Quando Duarte de Lemos arribou ao Espírito Santo com armas, bagagens e novos colonos de lambuja, o governador o recebeu com efusões de amigo, contando com sua ajuda para superar as aperturas da colonização ainda de gatinhas. Ao abraçá-lo contra o peito, debaixo de sorriso largo e satisfeito, segredou-lhe ao ouvido, procurando ser convincente:

- O Espírito Santo está cada vez melhor!

E para começo de trabalho próspero e duradouro, doou a Lemos a grande ilha de Santo Antônio sem a obrigação do pagamento de um dízimo sequer de mel coado, salvo um bem pesado pão de açúcar a ser anualmente fabricado nas moendas que Duarte de Lemos pusesse a funcionar na ilha. 

Era assim o governador - tendia ao exagero das palavras e aos excessos magnânimos.

Mais tarde, ele e Duarte se estranhariam.

Foi briga feia, de fidalgos emproados, com delações e  menosprezos de parte a parte, a amizade esperançosa dos primeiros tempos diluindo-se no vinagre a tal ponto que Lemos abandonou a grande ilha que já tinha o seu nome e uma luzidia capelinha nela edificada, voltando desgostoso para Portugal.

O governador saboreou a partida do ex-amigo com longa baforada de fumaça que lhe encheu as bochechas e umedeceu os olhos. E do fundo da rede de embiras, repetiu a frase predileta:

- O Espírito Santo está cada vez melhor!

Repetiu-a novamente quando fundou a vila de Nossa Senhora da Vitória na mesma ilha que coubera a Duarte de Lemos, em ocasião a que não faltou a bênção dos padres jesuítas, já então com as cruzes da catequese fincadas nas terras capixabas. 

Em 1555, pocou no ar mais uma vez o refrão governamental, na chegada ao Espírito Santo dos temiminós de Gato Grande, o Maracaiaguaçu indígena, transportados em quatro caravelões que os livraram do terrível assédio dos tamoios, na baía de Guanabara.

Ainda mal refeitos dos enjoos da viagem pelo mar, a saudação alvissareira deu-lhes a certeza de que em melhores plagas não podiam ter baixado. E aqui fundaram aldeias e geraram curumins, para gáudio dos sotainas de Jesus.

Houve vezes também em que a frase foi pronunciada fora do Espírito Santo, quando o governador pôs-se a arrebanhar desorelhados e homiziados em outras freguesias da costa brasileira.

Contam os que lhe traçaram a biografia que, nesses arrastões errantes, era graças à sentença exclamativa que ele se abastecia da brava e indomável gente de que necessitava para trabalhar no seu Vilão Farto.

Claro que nem sempre o resultado era o desejado por faltar aos arrebanhados a operosidade pretendida pelo governador, mas o apelo do seu sonoro fraseado funcionava como isca eficiente para encher a capitania de braços e de bocas. 

Em 1560, quem reproduziu a expressão foi Mem de Sá, que deve tê-la ouvido a Vasco Fernandes em alguma ocasião em que estiveram juntos. Ela aparece ipsis literis na missiva que o terceiro governador do Brasil mandou ao rei de Portugal, dando conta do estrago que as armas lusitanas causaram aos índios do Cricaré.

O trecho é conhecido, e diz o seguinte: saiba Vossa Alteza que carregaram os nossos sobre os gentios com tal estropício que ficaram mui castigados, mortos tantos e tão principais que parece não alevantarão a cabeça tão cedo. E concluiu consagrador: o Espírito Santo está cada vez melhor!

Outro que teria repetido o dito, que se tornara de uso correntio na capitania, foi frei Pedro Palácios, na festa de inauguração da ermida das Palmeiras, no píncaro da Penha.

É bem verdade que daí decorreu uma polêmica transcendental: para os historiadores, ao dizer que o Espírito Santo estava cada vez melhor, e ao dizê-lo em espanhol, frei Pedro referiu-se à terra capixaba, ao rincão farto do capitão-mor; para os místicos, no entanto, o frei se dirigia ao Espírito Santo propriamente dito, excelso e supremo. Até hoje a questão está mal resolvida.

Amiúde, porém, a frase preferida de Vasco Fernandes nem sempre se adequava ao caos social e às dificuldades de todos os gêneros que reinavam no Espírito Santo.

Índios assaltavam os colonos em suas casas e lavouras, e o governador dizia a frase; a maledicência, a jogatina e as discórdias campeavam na capitania, e o governador dizia a frase; a saúde da população ruía em pandarecos com os doentes morrendo de maleita e de bexigas sem que a extrema-unção chegasse a todos pelos sais dos jesuítas, e o governador, ignorando a mortandade coletiva, soltava a frase ressonante, afundado em sua rede de embiras.

Durou isso o tempo de vida do governador à frente do seu senhorio.

Depois que ele se foi para as páginas da história, todos que a ele sucederam na governança da terra capixaba encamparam a frase retumbante, ainda que não inebriados pelas brumas das fumaças, mas com a mesma empolgação do seu autor.

E tal como ocorria com Vasco Fernandes, às vezes a apologia exortativa se adequava à realidade do Espírito Santo. O mais das vezes, não.

 

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