Delírio mórbido 

No espaço aberto sob a mesa da atendente apenas os seus pés eram visíveis, enquanto ela digitava no computador.

Eu os vi de onde me encontrava, na poltrona de couro rechonchudo da sala de espera, no consultório de terapia. Eles chamaram a minha atenção porque pés femininos constituem para mim um fetiche mórbido, ao ponto do delírio.

A princípio, os pés se mantinham juntos e imóveis, nas sandálias de saltinho baixo. Não eram grandes, nem pequenos, e estavam à vontade sob as tranças retrançadas das sandálias, as unhas dos dedos pintadinhas de vermelho.

Não sei por que achei que se harmonizavam à perfeição com o formato do rosto da atendente, com seus cabelos ondulados que desciam até os ombros, suas mãos de pianista, seu queixo com uma covinha rasa encravada no centro. Harmonizavam-se também – para mim este era outro importante ponto de harmonia – ao sorriso de marfim e à voz modulada, ligeiramente grave que a atendente tinha.

Ainda há pouco, aquela voz parnasianamente calorosa solicitara meus dados pessoais para abrir a ficha computadorizada da minha primeira ida ao terapeuta. Feito o quê, me orientou:

- Sente-se ali na poltrona. O senhor é o primeiro paciente do dia. O doutor já vai atendê-lo.

Sem o imaginar, ela me posicionara num observatório privilegiado para contemplar seus pés que, agora fora das sandálias, começaram a se balançar para frente e para trás num vaivém que me pareceu provocativo. E a impressão que eu tive foi a de que os pés também me viam lá do minipalco retangular em que se agitavam, onde iniciaram sua exibição particular para meu deleite pessoal, sem que a dona dos pés oscilantes e descalços tivesse consciência do que se passava sob sua mesa, fora das suas sandálias.

Era um bailado mudo e distraído, em que os pés ora oscilavam enroscados entre si, ora se desenroscavam como um par de dançarinos bem treinados, tocando-se de leve pelos calcanhares e logo se afastando, para se juntarem em seguida em enlaces conjugais, lembrando-me os bailados impecáveis de Fred Astaire e Ginger Rogers.

De repente, porém, algo impensável aconteceu: os pés se soltaram do corpo a que pertenciam e se puseram a dançar livres e volantes sobre o piso da sala de espera em que eu me encontrava. Soltaram-se por conta própria, sem que a atendente manifestasse o menor sinal de haver percebido a escapada dançarina e sem que sequer demonstrasse qualquer interesse pelo espetáculo que seus pés estavam me proporcionando.

Fui eu que, tomado pelo assombro, chamei-lhe a atenção:

- Senhorita, seus pés estão dançando na minha frente!

Ela se restringiu a me lançar um olhar condescendente, acompanhado da benevolência do sorriso de marfim, e voltou a trabalhar normalmente como se a espantosa dança dos seus pés descalços fosse a coisa mais natural do mundo, aos olhos de um paciente num consultório de terapia.

- Senhorita! – invoquei-a desta vez com mais vigor: – Seus pés estão subindo pelas minhas calças! E não sei o que me impede de detê-los! Tome uma providência!

De fato, por alguma cavernosa razão psicológica eu me via condenado a uma passividade inexplicável, que me deixava à mercê do assalto de que estava sendo vítima. O máximo que consegui foi retesar o corpo ao longo da poltrona, com as pernas esticadas. Meu desespero atingiu o auge quando os pés dançarinos passaram a saltitar freneticamente sobre minha região pélvica, provocando-me uma ereção incontrolável e vergonhosa que me levou a gritar desesperado:

- Senhorita, eu sofro de ejaculação precoce! Tire, por favor, seus pés de cima de mim! Viu? Eu não disse?

Só então, depois do caldo entornado no mais vexatório dos derrames que experimentei em minha vida, a atendente reconheceu que se fazia necessária uma salvadora intervenção da sua parte, para pôr fim à humilhação a que eu ficara reduzido. E do seu posto de trabalho ditou a ordem que já devia ter dado há muito tempo:

- Vocês dois aí, voltem para o seu lugar imediatamente! Quanto ao senhor – prosseguiu ela com um olhar profissional e comiserativo –, pode fazer um asseio no toalete que fica à esquerda do corredor de entrada.   

Foi o que fiz, da melhor maneira que pude. 

Quando retornei à recepção, o sorriso de marfim e a voz modulada me avisaram que o doutor já estava me aguardando. Profundamente constrangido, abri a porta da sala de consulta e entrei.

Notando meu embaraço, cuja razão saltava à vista, disse-me o terapeuta, de saída:

- Já vi que minha atendente veio hoje de sandálias. Quando terminarmos a consulta, sou eu que vou me sentar na poltrona em que o senhor estava.

Foi o quanto bastou para que eu, tomando a sério as suas palavras, rodasse nos calcanhares, batesse a porta com estrondo e abandonasse o consultório correndo para o elevador. No meu encalço, porém, projetou-se a atendente, gritando esbaforida:

- Senhor, senhor! O doutor disse que estava só brincando! Pode voltar para a consulta!

Para não parecer mal educado, deitei-lhe uma derradeira olhada de cima em baixo, e disse arrasador:

- Não volto não! Além de tudo, a senhorita ainda está sem os seus pés...!

 

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