Churrasco no praça do quartel 

Difícil acreditar que às dez horas da manhã do feriado do Dia do Trabalho o fantasma do centro histórico de Vitória nos aparecesse nas imediações do Parque Moscoso. O nos aparecesse vai por conta de estar eu na companhia do meu grande amigo, o escritor Pedro Nunes.

Tínhamos ido ao Parque para tirar umas fotos para um livro de nosso comum interesse, eu como autor, Pedro como ilustrador, quando nos chamou a atenção, pouco além da sede do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, um churrasco que fumegava a céu aberto com duas novilhas presas em barras de ferro tostando num braseiro, enquanto ao seu redor o populacho aguardava pacientemente a hora de trinchá-las num banquete comunitário.

“Veja aquilo”, disse Pedro sem acreditar no que via. E eu vi o que Pedro viu sem acreditar no que Pedro vira.

“Nem em Macondo, do velho Garcia Marques, houve um festim como este”, comentei literário.

Foi quando o fantasma nos sobrevoou num volteio de urubu e já baixou dizendo:

“Estão notando como estou fedendo? Sintam o mau cheiro!”, e me estendeu a manopla canhota para que a farejasse, obrigando-me a uma desviada esperta para me safar à mão sinistra com o bafo gorduroso que nela pudesse estar contido.

“Cheire você então”, disse o fantasma empurrando a mal cheirosa para cima de Pedro, que também dela se esquivou numa manobra digna de um ágil pugilista.

“Que cheiro é esse, fantasma?”, perguntei sem que o tivesse cheirado.

“Daquele churrasco ali, meu digno! Veja que absurdo! Já vi de tudo na minha vida e também desde que estou morto, mas um churrasco franqueado ao povo, com a passagem de carros interrompida em plena praça do Quartel, nunca tinha visto. Ó tempora, ó mores!” 

A praça do Quartel, da fala do fantasma,  é a atual praça Misael Pena, onde outrora existira o quartel da Polícia Militar, que dava popularmente nome ao local, a poucos metros do Parque Moscoso. 

“Para nós foi também uma visão surpreendente”, disse eu, falando por mim e por Pedro, que aquiesceu com a cabeça.

“Mas o peior, meu digno – retrucou o fantasma - é que como eu vinha planando distraído, não vou dizer que pensando na morte da bezerra (ele gorgolejou uma risada mal assombrada com a própria piadinha), acabei passando dentro da fumaça pegajosa que se entranhou no meu espectro. Logo hoje que eu intentava pernoitar no Instituto Histórico.” 

“Você costuma pernoitar no Instituto?”, perguntei tão surpreendido como se estivesse vendo outro churrasco no Parque.

“Sempre que posso, meu digno. Ou no Instituto ou no túmulo de Anchieta, no Palácio do Governo. O túmulo continua vazio e depois da grande restauração que o palácio sofreu, está muito confortável. Por experiência própria, de quem o ocupa algumas vezes, afirmo que está até luxuoso demais para a proverbial sobriedade jesuítica. Vale a pena passar uma noite nele. Quanto ao Instituto Histórico não apenas eu pernoito ali sempre que posso – e também o faço como se estivesse num sacrário histórico -, como me dou ao gáudio intelectual de comparecer às sessões solenes do nosso mais antigo sodalício cultural. Sem falar nos encontros ocasionais de que privo, à noitinha, com o presidente da Casa, gente da maior excelência.”

A informação que o fantasma acabava de dar foi o que posso definir de a terceira grande surpresa que me pegou de surpresa naquela manhã surpreendente, dentro da seguinte ordem: 1ª) a de que ele fedia a fumaça do churrasco; 2ª) que costumava pernoitar no Instituto Histórico; 3ª) que privava de encontros ocasionais com o presidente da vetusta instituição.

“Nunca passou pela minha cabeça que você e o presidente tivessem tais encontros”, disse eu.  

Modus in rebus, meu ínclito”, corrigiu-me o fantasma. “Eu não disse que são encontros, no sentindo que você entendeu. Como eu descobri que o presidente do Instituto vai lá algumas vezes para se doar a meditações históricas solitárias, após o seu expediente diário, eu aproveito e vou também, mas sem que ele me veja, para não o assustar.”

“E de que maneira você e o presidente desenvolvem as tais... meditações históricas?”, indagou Pedro admirado.

O fantasma deitou sobre meu amigo um olhar de infinita comiseração pela sua ignorância em relação às coisas do Além, e se deu à paciência de ser mais explicativo:

“É muitíssimo simples, meu bisonho amigo. Quando estou lá, sou eu que conduzo telepaticamente as meditações do presidente, sem que ele sinta que está sendo conduzido. É a forma que eu tenho de dialogar com ele, bancando o cicerone do passado. E pode estar certo de que são as mais proveitosas incursões que ele faz pelos corredores e galerias (não se esqueçam das galerias) da história do Espírito Santo”, disse o fantasma sem sombra de modéstia. “Hoje mesmo, dia consagrado ao descanso universal, tenho certeza de que ele irá ao Instituto. Como poderei ir também se estou fedendo a churrasco e minhas entranhas clamam por um hausto de limpeza? Iria conspurcar o ambiente.”

“Tome um banho antes...”, sugeriu o Pedro botando os bisonhos espinhos de fora.

“Mas onde vou tomar um banho, meu preclaro? Pode ser na sua casa?”, indagou o fantasma em tom não menos espinhoso.

Antes que Pedro dissesse qualquer coisa – e o mínimo que Pedro dissesse seria o que Pedro ia dizer coberto de razão –, cortei o duelo dos dois gladiadores.

“Você tem uma solução mais simples, meu caro fantasma. Ainda há pouco eu e o meu amigo passamos pelo Parque Moscoso e vimos o chafariz, do tempo de Jerônimo Monteiro, jorrando água em chuveirinho. Para quem se besuntou da fumaceira das novilhas vai ser um refrigério banhar-se naquelas águas. Você vai sair de lá um abantesma inodoro e limpo de espírito”, disse eu, sem a menor intenção de fazer graça.

O fantasma avaliou meu conselho e disse:

“Sua sugestão é bem-vinda e vou provê-la agora mesmo para matar dois coelhos com uma só cajadada: livrar-me do ranço das novilhas e rever a fonte que tem o nome do maior governante que o nosso Estado já teve. Digo isso ex cathedra porque fui seu adjunto de ordens no governo, com muita honra. E afinal foi o doutor Jerônimo quem dotou Vitória de água encanada. Lembro-me como se fosse hoje quando ela jorrou pela primeira vez no repuxo da praça Santos Dumont que, ainda bem, passou a se chamar praça Oito de Setembro, deixando de homenagear quem para mim foi um embusteiro sem tamanho, inventor do avião uma potoca! Mas que festa, meus ínclitos, que festa, o jorro da água encanada! O povo vibrava aos pulos e aos vivas debaixo do repuxo, molhando-se com a roupa do corpo. Era o adeus aos sofridos tempos em que a água tinha que ser buscada diuturnamente nas raras fontes que havia em Vitória ou adquirida em latões vendidos a domicílio. Pensem bem, meus ínclitos, o que era tomar um banho naquela época, num comezinho ato de higiene pessoal. Banho de caneco é o que era! Eu mesmo não resisti ao júbilo geral que reinava na praça e caí debaixo do repuxo, encharcando de água meu paletó de casimira inglesa, a calça de bainha dobrada, os sapatos londrinos de duas cores, a camisa de linho branco com meu colarinho engomado, meu chapéu de palhinha e a bengala que não larguei de mão e ainda girava no ar, na minha exultação.  Esqueci até do meu patek philippe no bolsinho do colete. Dou todos esses detalhes porque lembrar é comigo mesmo, pois fantasma que não tem memória é assombração. Mas deixem-me ir matar meus dois coelhos no chafariz do Parque, revivendo (o que é apenas um modo de dizer), a satisfação daquele banho de cem anos atrás, na praça Oito.  

“Você vai é matar duas novilhas com uma só chuveirada”, disse eu.

O fantasma gostou da pilhéria, porque cacarejou de novo sua risada mal assombrada e decolou apressado em direção ao chafariz.

“Nem nos deu a honra de uma despedida”, disse Pedro, que ainda tentou, sem conseguir, fotografar o voo repentino com a máquina que trazia pendurada no pescoço.    

“Vamo-nos daqui antes que ele volte para comprovarmos se perdeu ou não o cheiro de gordura”, disse eu.

“Espero que não perca nunca!”, espinhou Pedro pela derradeira vez.

 

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