O conclave fantástico  

    (uma leve animação histórica com Anchieta) 

- Que pena, meu digno, você não ter assistido ao conclave em louvor da canonização de Anchieta, aqui no largo Afonso Brás – disse o fantasma do centro histórico de Vitória, detendo-me na praça João Clímaco a que ele se referiu pela denominação antiga.

- Que conclave foi esse, meu amigo? – interroguei-o ávido de detalhes.

- Um conclave nunca jamais visto no torrão capixaba! Uma multidão de almas congraçadas de uma só vez! – disse o fantasma, gotejando informações.

- Almas?!

- Almas e fantasmas, porque há uma sutil diferença entre uns e outros, o que você vai saber um dia...

- Quer dizer que foi um conclave de mortos? – inquiri quase tropeçando nas palavras que expressavam a minha estupefação.

- Mortos não é o termo adequado. Diga conclave de idos do mundo dos vivos que estará mais próximo da verdade. Todos ordeiramente em fila para cumprimentar Anchieta, postado na antiga entrada da igreja de Santiago, na porta lateral do palácio que hoje tem o nome dele, nesta heroica cidade de Nossa Senhora da Vitória! Você precisava ver a alegria do novel canonizado, com sua auréola novinha em folha! E, cá para nós – o fantasma reduziu o tom a um minúsculo cochicho em minha orelha, que ficou endurecida com o seu bafo frio –, era ao mesmo tempo comovente e engraçado. Comovente pela felicidade que Anchieta irradiava, em seu excelso estado de santo da Igreja, o que já merecia há quatro séculos; e engraçado pela visível dificuldade que ele tinha para equilibrar a auréola sobre a corcundinha que tanto o incomodou em vida.

- Um santo noviço... – deixei escapulir a frase.

- Lúcido comentário! – disse o fantasma. – Haja vista que, de quando em quando, era necessário avisá-lo de que a auréola saía do lugar...

- Seria devido à potência da luminosidade original? – atrevi-me à observação que, para minha segunda surpresa, foi bem recebida pelo fantasma.

- Você matou a charada. Um halo grande e carregado de luminescência, digno de Anchieta. Já que estamos falando nisso, houve até um momento de geral hilaridade. Foi quando Anchieta e frei Pedro Palácios se confraternizaram num amplexo tão extremoso que o halo chegou a oscilar momentaneamente de um para o outro. Foi engraçadíssimo! Houve quem visse na oscilação da auréola um prenúncio da canonização de frei Pedro...

- Você garante que era frei Pedro Palácios? – perguntei de queixo caído.

- Claro, meu digno. Eu não falei que foi um conclave nunca jamais visto no torrão capixaba? Estavam todos aqui... Todos...

- A que todos você se refere? – indaguei expectante.

- Todos de quem você, desde Vasco Fernandes Coutinho, já ouviu falar como historiador, sem conhecê-los pessoalmente. Pedro Palácios, eu já mencionei. Inclua também: Afonso Brás; Brás Lourenço; Coutinho Filho e sua mulher, a piedosa Luiza Grimaldi; e a heroína Maria Ortiz e o heroico Domingos Martins, que ainda ostenta no peito as marcas do fuzilamento e que ficou pousado, à vontade, sobre o busto que ele tem na praça; o primeiro bispo do Espírito Santo, Dom João Baptista Nery, se fazia acompanhar de Dom Luiz Scortegagna – que você conheceu na década de 40 do século passado. Dom Luiz não se cansava de dar vivas a Anchieta. Opa, quase ia me esquecendo, sabe de quem? Vê se adivinha?

- Não faço a mínima ideia...

- De Maracaiaguaçu, meu digno! – disse o fantasma dando uma volta em torno de si mesmo para extravasar a alegria da lembrança que quase lhe escapou.  

- O Gato Grande dos temiminós? – perguntei incrédulo.

- O próprio, com toda a sua tribo catequizada pelos jesuítas – festejou o fantasma. - Como você está vendo, gente da melhor qualidade na história capixaba (o fantasma falou realmente gente, prosseguindo em sua loquacidade habitual): - Some também os participantes inesperados, que não foram poucos. Nóbrega era um deles, e me pareceu que não escondia um lume de inveja no olhar, Deus que me perdoe; Fernão de Sá, a quem cumprimentei de passagem, recendia às águas do Cricaré, onde foi trucidado pelos tupinambás; e o pai dele, o velho Mem de Sá, também apareceu com a barba branca e faustosa. Lembre-se de que ele foi enaltecido como herói da cristandade no poema em que Anchieta narrou os seus feitos épicos no Brasil.

- Um poema para não ser esquecido... – epigrafei. E cutuquei a carolice do fantasma: - Impressiona-me que, apesar de autor de um poema que louvou a matança de índios, Anchieta tenha sido canonizado.

- Foi uma guerra santa, meu digno, e apenas contra os bugres sanhudos que eram antropófagos e não se dobraram à Fé católica – replicou o fantasma em defesa de Anchieta e Mem de Sá. - Não me venha a dar agora uma de marquês de Pombal que, aliás, quase estragou a festa.

- O marquês estava presente? – perguntei pressentindo desavenças na fantástica solenidade.

- Um estraga-prazer! No auge da comemoração ergueu a voz rancorosa contra a Companhia de Jesus e contra a santificação de Anchieta, criando um mal-estar pesado, que durou um negro minuto de silêncio. Até Jean de Bollés, o francês calvinista a quem Anchieta, num ato de extrema misericórdia, apressou o enforcamento no Rio de Janeiro, se mostrou incomodado com a intervenção. Felizmente, o marquês foi bravamente escorraçado do conclave por um sopro poderoso e tresandando a cauim, dado em coro pela tribo de Maracaiaguaçu. Espero que tenha aprendido a lição...

- Vejo que perdi um acontecimento extraordinário... – disse eu.

- Perdeu mesmo, porque até seu pai compareceu...

- Meu pai?!

- Sim, o professor Guilherme. Ele não era ocupante da cadeira de Anchieta, na Academia de Letras, e grande admirador do padre? Veio com o amigo de sempre, o professor Renato, que representava o Instituto Histórico, o que muito contrariou Domingos Martins, que achava que essa prerrogativa cabia a ele, como patrono da instituição. Já seu pai representava a Academia, e que eu saiba ninguém protestou. Como você está vendo, foi um conclave transcendental, meu digno, a que não faltaram discursos apologéticos e um sermão glorioso. Sabe de quem? Vê se adivinha! - desafiou-me o fantasma de acordo com a sua mania renitente.

- Do padre Antunes de Siqueira? – atirei ao acaso.  

- Está frio, está frio! Dou-lhe outra chance, meu ínclito! – disse o fantasma com um movimento de boca que, tentando ser um sorriso, revelou-se um esgar azedo e tétrico.

- Eu passo. Diga logo quem fez o sermão – cortei o chicotinho-queimado do fantasma, no jogo das adivinhas.

- O padre Vieira, meu ínclito! O grande Vieira! E que belíssima oração ele dedicou a Anchieta! Cheguei a decorar um trecho. Quer ouvir?

Mais que depressa, o fantasma repercutiu com voz altissonante: “Havia de ser nestes dias de quaresma, e em nenhuns outros. Havia de ser pela sagração de um papa jesuíta, o primeiro da Igreja, e nenhum outro, que se consumasse a canonização de outro jesuíta, o bem-aventurado José, o de Anchieta, que pequenino de estatura, enormíssimo se fez dentre os que na Companhia se devotaram à catequese do gentio nas terras do Brasil, o que a mim, jesuíta como eles, não me admira como prova de amor e doação a Cristo”. Não foram palavras grandiloquentes? – exultou o fantasma.

- Grandiloquentes e merecidas... – aprovei.

- Para coroar o conclave, santo Anchieta agradeceu em latim, português, espanhol e tupi – disse o fantasma. - Um discurso emocionante, dedicado à Virgem, em que o orador foi ovacionado de pé pelos presentes. O conclave poderia ter durado mais umas três horas, pela medição do tempo na contagem dos vivos, se Anchieta não estivesse visivelmente ansioso em se recolher ao seu túmulo oficial, no palácio que tem seu nome. A sua ida para o sepulcro foi triunfal, meu digno: carregado nos ombros pelos índios! Um espetáculo maravilhoso! Você precisava ter visto.

 - Sem a menor dúvida – declarei, arrematando com entusiasmo: - Anchieta entrando na sua melhor idade eterna!  

- Mas não se amofine, meu digno – consolou-me o fantasma. - Um novo conclave está marcado para o primeiro aniversário de canonização do nosso santo, desta vez em Anchieta, onde ele morreu. Considere-se convidado. Não me vá faltar, esteja vivo ou morto – disse o fantasma eclipsando-se no ar em meio a um gorgolejar sinistro e rouco que me pareceu uma malsinada gargalhada.

 

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