O homem vestido de verde (final)

O sol estava agora esmagador (Albert Camus, O Estrangeiro).

Eu sou aquele que colocou os dois homens diante um do outro em lados opostos da estrada asfaltada.

Vejo-os onde estão e os isolo no tempo e no espaço inserindo-os na imóvel irrealidade de um recorte de história fantástica, para o prazer da minha contemplação exclusiva. 

A estrada, infinita e deserta, serpenteia entre lavouras de café e bosques de eucaliptos, debaixo de um sol esmagador.

Os dois homens se encaram à beira do asfalto, examinando-se mutuamente. Não estão preocupados com a extensão da estrada, nem com a paisagem em volta que ondula pelas vastidões, na contundente luminosidade do dia.

Parados onde estão se concentram em si mesmos à espera de algo que ainda não sabem o que seja, mas que se faz quase palpável, de mistura com o calor implacável que entorpece seus corpos e mentes.

Estão tensos, tentando disfarçar entre si a apreensão que os domina, mas que se revela nas gotas pesadas e mornas do suor que lhes desce das têmporas.

Consideram-se senhores de um poder de ação para usar na hora em que o golpe de ataque ou defesa acontecer entre eles. Julgam-se donos de suas vontades e atos para o que possam ou não possam fazer, ali, de olho um no outro, prestes a um trágico momento de sangue e de morte onde eu os imobilizei na borda da estrada ensopada de sol, quando na verdade toda decisão que possam tomar está sob meu inteiro domínio, dependente do controle que sobre eles exerço, no andamento do enredo em que os enredei numa trama terrível.

Às vésperas da tragédia em que eu os contemplo, há entre os dois que se observam com disfarçada cautela um frágil equilíbrio de forças que em breve será rompido, sem que nenhum dos dois deseje o pior para si mesmo.

Um deles veio de fora. É estrangeiro por estas paragens. Ao chegar aonde chegou jamais poderia imaginar que ao sair do carro para tirar umas fotos num cenário de luz efusiva que banha montanhas e vales fosse ver o que viu: um pobre coitado condenado a varrer, numa estrada sem fim, a terra que o vento amontoa sobre o asfalto negro e pesado.

A visão inesperada tocou-lhe a fina sensibilidade e um desejo impetuoso de dar paradeiro àquele sofrimento sem lógica apoderou-se de todo o seu ser.

O segundo homem, embuçado num uniforme verde berrante que o imuniza dos raios solares transfigurando-o literalmente numa criatura assombrosa, estava, por sua vez, longe de supor que o estranho que acabara de surgir a sua frente iria se atribuir, por intrincadas especulações metafísicas, a nobre e sagrada missão de livrá-lo do penoso trabalho diário a que se resigna, mas que aos olhos do recém chegado tem o carma de um tormento desumano e cruel.

Na iminência do previsível confronto em que se empenharão os dois homens, isolados do mundo num recorte de estrada de sol dardejante, não mais lhes cabe tecer indagações sobre as motivações que os arremeterão um contra o outro, no embate que lhes está destinado.  

Já ficou para trás o tempo das inquietações e das dúvidas que a cada um deles tocou, das palavras possíveis que entre os dois foram ditas e das muitas que ficaram estancadas em mutismo de pedra.

É hora do duelo fatídico, num sol de pesadelo.

Muito embora cada um dos dois acredite que conta com a vantagem que pegará o outro no contrapé da surpresa, garantindo para si o êxito de uma sobrevivência indene ante a fatalidade irreversível que os aguarda, eu sei que não será assim porque fui eu quem criou a engrenagem que os antepôs na ambivalência antagônica em que se deparam, perto de um entrechoque fatal de contrários.

Agora, sem perda de tempo e sem mais palavras, disponho-me, finalmente a lhes devolver a ação que eu lhes havia tolhido na estrada encharcada de sol.

Reative-se, pois, o quadrante em que daqui os contemplo.

Mal tomo a decisão, restabelece-se o ritmo mecânico do trágico andamento que ficara suspenso. Condenados ao que lhes há de vir os dois homens se aproximam um do outro enquanto sobre suas cabeças, num presságio nefasto, perpassa a sombra fugidia de uma esquadrilha de gaivotas em forma de foice.

Com um riso cruel, já posso subscrever com todas as letras do meu nome a obra que arquitetei ponto a ponto: Absurdo.

 

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