Caprichos de fantasma

Para quem sempre via o fantasma do centro histórico de Vitória de aura crispada era inusitado encontrá-lo numa alegria jovial.

- Vejo que você está satisfeito ou é ilusão de ótica? – perguntei. 

- Hoje estou voejando em felicidade, meu digno. Matei uma saudade antiga: andar de elevador com porta pantográfica. 

O fantasma referia-se aos elevadores de porta sanfonada que chegaram a Vitória há quase cem anos.

Nosso encontro se dava na cidade alta, em frente à loja maçônica Grande Oriente do Brasil. O fantasma me disse que acabara de subir e descer no elevador do Hospital da Associação dos Funcionários Públicos, no prédio ao nosso lado, num reencontro com o passado.
 
- Ninguém deu pela sua presença?

- Subi e desci invisível. Na subida, entrei junto com uma senhora com angina pectoris, amparada pela filha; na descida, na companhia de um enfermeiro que empurrava uma maca com rodinhas.

- Paramédico... – disse eu.

- Enfermeiro – insistiu ele, por não ter entendido ou não ter ouvido direito.

- Hoje os enfermeiros são chamados paramédicos, o que não significa que melhoraram a competência do atendimento – expliquei-lhe. - As palavras têm mudado com o tempo; os enfermeiros, quase nada, só de nome.

- E o feminino de paramédico é paramédica? Não me parece uma mudança simpática – disse o fantasma quando confirmei com a cabeça a pergunta que ele me fizera. - Mas o que quero mesmo é continuar enlevado com o meu recente passeio num elevador de gradinha. Que prazer os elevadores me causavam antigamente! Neles não se tinha claustrofobia, um mal do qual posso falar de cadeira. Melhor dizendo, de jazigo.

- Fico feliz de saber que você encontrou um motivo de alegria para vivenciar depois de morto – comentei querendo ser agradável, embora tivesse de esclarecer o sentido do verbo vivenciar, desconhecido pelo fantasma e por mim mal empregado no seu caso. 

- A morte não é triste, meu digno. É apenas solitária. Poucos como eu conseguem quebrar a solidão funérea enquanto conservam o estágio de fantasma. Depois é o nada – dispensou-me, em poucas palavras, uma lição de morte. 

Não pude deixar de pensar que a quebra da sua funérea solidão era sempre às minhas custas.

- Sabe como fiquei sabendo da existência de elevadores para o transporte de pessoas? – perguntou em seguida, não deixando o tema esfriar.  

- Não imagino...

- Pela literatura, meu digno, pela literatura. Foi lendo As cidades e as serras, de Eça de Queiroz, numa tardia descoberta de quem vivia na província capixaba. O elevador ficava na residência do Jacinto de Tormes, em Paris. Um elevador espaçoso, atapetado, com todo conforto. Um exemplo do avanço da civilização, num prédio de dois andares “para uma jornada de sete segundos”, como escreveu meu querido Eça de Queiroz. Você deve estar lembrado da descrição...    

Eu não me lembrava, e me espantava não só que o fantasma se lembrasse, mas que também tivesse lido A cidade e as serras.

- Nunca pensei que você lesse Eça – externei-lhe minha admiração.

- Nos meus estudos, no Ateneu Santos Pires, Eça de Queiroz era leitura obrigatória. Gostei tanto que virei habitué dos seus livros. Mas entre a descoberta do elevador, nas páginas do romance, e o primeiro uso que fiz de um deles, passaram-se vários anos. Sabe, meu digno, onde aconteceu minha iniciação no ascensorismo elétrico de porta pantográfica?
 
Pela segunda vez o fantasma fazia uma pergunta para mim irrespondível.

- Não me diga que você nunca andou de elevador com porta pantográfica, o dinossauro dos elevadores! – disse ele.

- Andar, andei – tive que admitir. – Mas isso não me dá condição de responder a sua pergunta.

- Mas pode tentar. Vamos fazer um teste. Quais eram os edifícios de Vitória que tinham elevadores com porta pantográfica? Eu sei que você sabe. A maioria dos prédios ainda está aí, embora nem todos com os elevadores daquela época. Você vai dizendo os nomes que acaba acertando. Estou testando sua memória porque eu mesmo tive de fazer um levantamento meticuloso, antes de andar no elevador da Associação, um dos poucos que continua funcionado na cidade. 

O que o fantasma chamava de teste era na verdade uma imposição. E eu, que o conhecia de cor e salteado, sabia que não largaria do meu pelo enquanto não aceitasse seu desafio. Pus-me então a transitar mentalmente pelo centro de Vitória, como um fantasma vivo, procurando recordar dos velhos edifícios com seus arcaicos elevadores de grades pantográficas.

- O do Banco Inglês... – foi o primeiro que lembrei.

- Não foi esse! – disse o fantasma.- E para o seu governo, o elevador do antigo Banco Inglês, no prédio que hoje é de outro banco, está mais fora de utilidade do que eu. Passemos à segunda tentativa.

- Então foi no elevador do Edifício Antenor Guimarães, na Costa Pereira, ou Praça da Independência, se você preferir...

- Errado novamente. Aliás, também para seu governo, o primitivo elevador do Antenor Guimarães foi trocado por um moderninho. Eu andei por lá recentemente, bisbilhotando.

- Teria sido então no elevador do Theatro Glória? – disparei meu terceiro palpite. 

- A qual deles você se refere, porque havia dois: um na entrada que dava para a avenida Jerônimo Monteiro e outro no lado de trás. Mas não perca tempo com nenhum dos dois porque também não foram neles. Escarafunche a memória com aferro! 

Escarafunchei-a com aferro.

- Não foi o do Banco Inglês, nem o do Antenor Guimarães, nem os do Glória... Aposto que foi no do Hotel Sagres!

- Você está quente, mas errou de novo. Arrisque outra vez... – animou-me enquanto limpava uma remela de terra esquecida na órbita do olho esquerdo.

- Não vai dizer que foi no da Associação...

- Não, não foi. Qual a próxima jogada?

Um bloqueio mental impediu que me lembrasse de outros edifícios com elevadores de portas pantográficas em Vitória, de modo que não houve a jogada esperada pelo fantasma. Dei-me por derrotado, o que lhe proporcionou a glória de proclamar com voz “entumbada” (com ressonâncias de tumba):

- Foi no elevador do Hotel Majestic, meu digno, o primeiro hotel de luxo de Vitória! Eu estive na sua inauguração, em 1926, e tive a subida honra de subir no elevador na companhia do presidente Florentino Avidos. Ainda me lembro da gravata listrada que ele usava com um laço rotundo e bem acabado. Guardei o pormenor porque eu portava uma gravata borboleta azul-marinho aflorando do meu colarinho alto, o que me deixava mais elegante do que o nosso primeiro mandatário. Travamos então um curto colóquio, que nem depois de morto eu esqueci:

- Bela gravata... – disse o presidente.

- Obrigado, excelência! Comprei-a na Flor de Maio – retruquei com uma vênia cerimoniosa.

O presidente também elogiou minha bengala com castão de cabeça de cachorro. Quase lhe confidenciei que fazia parte da minha coleção importada diretamente de Londres, mas não achei o momento propício. Eu e meu dileto amigo, o comendador Deodato, gratissima persona, emulávamos amistosamente com as nossas coleções de bengalas. Era de ver nossos ricos bengaleiros com uma penca delas, artisticamente envernizadas. O comendador se dava o esmero de ter bengalas cujo castão tinha por motivos os signos dos meses. A propósito, eu tive a satisfação de ser o único convidado na inauguração do Majestic que estava de bengala. Durante semanas não se falou noutra coisa, nas mesinhas do Café Globo (estou me referindo à festa da inauguração, não à bengala). Já lhe contei que foi no Majestic que me tornei amigo do eminente marechal Cândido Mariano da Silva Rondon?

 - Já! – cortei ao fantasma uma variante nova em nossa conversa evitando que ele chegasse ao “morrer se for preciso, matar nunca”.  E observei: - Com tantas reminiscências que lhe são caras posso avaliar a importância que teve para você a “descoberta” dos elevadores. Mas o que não consigo entender, meu digno fantasma, é por que voejando de um lugar para outro com a facilidade que Deus lhe deu (a frase me saiu sem querer), subir e descer de elevador continua sendo um grande prazer para você... (quase disse em sua vida).

- O prazer, meu ínclito, vem de me sentir novamente humano, ainda que numa jornada de sete segundos, na frase incomparável de Eça de Queiroz. É uma sensação tão forte para um fantasma, que vou agora mesmo repeti-la no elevador da maçonaria... Por que, se não me engano, acho que ali tem um elevador com porta pantográfica... Se não tiver, aproveitarei para rever alguns irmãos, quando nada em retratos do passado.

- Sois maçom? – fiz a pergunta ante o que ele havia dito e antes que partisse.

- É uma tradição de família desde quando o meu excelso bisavô se fez maçom, acolitado por D. Pedro I. Seu primeiro aventalzinho de aprendiz virou relíquia familiar. Mas agi também por interesse: quem não era maçom não prosperava em Vitória. Nem precisávamos nos identificar pelo toque sorrateiro de dedo, nos cumprimentos de mão.  Todos nos conhecíamos a olhos vistos. E se você quer saber, fui rotariano também, de não perder um almoço desde que o Rotary Clube surdiu em Vitória, no ano da graça de 1934, no governo do Punaro Bley, com quem eu não simpatizava. Sempre tive um pé atrás para com os mineiros, por causa da questão do Contestado. E o Bley, com quem até hoje evito me encontrar, tratava os capixabas com a soberba de um conquistador romano, rempli de soi-même. Coisas da revolução de 30... Não sei como aguentamos tanto tempo o punarismo que Getulio impôs ao Espírito Santo! Você deve se lembrar, porque já era nascido nessa época. Ou estou enganado? Mas não quero postergar minha ida à maçonaria. Au revoir, mon ami

Bom revoar! – foi tudo que consegui dizer antes que o fantasma abalasse pelo Grande Oriente do Brasil adentro.

 

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