Entre a ficção e a realidade

O encontro era sobre a ficção e a realidade na Literatura. O local: o Centro Cultural Majestic, em Vitória. Palestrantes: três escritores de nomeada, com aclamado reconhecimento nas hostes literárias capixabas.  

Por certo que eu estava lá, levado pelo tema a ser debatido, pela excelência dos expositores e, de quebra, pela qualidade do lanche servido aos assistentes do encontro.

Só não podia imaginar que o fantasma do centro histórico da cidade também aparecesse. E, como sempre, atacou-me de inopino, quando fui ao toalete.  

- Eu não sabia que você andava deprimido – disse-me com voz cavernosa.

- Você, AQUI? – pasmei. 

- Por que não, meu digno? Entrei pela janela... Aqui é um bom lugar para minhas aparições - o velho Majestic, um ex-hotel de Vitória! Aqui eu conheci o marechal Candido Mariano da Silva Rondon, em 1926, como hóspede oficial do governo. Um patriota, o Candido Mariano, gente da maior honradez! Tornou-se meu amigo e correspondente. Nós nos carteávamos uma vez por ano. Era difícil, naquela época, as cartas chegarem às selvas brasileiras, levadas pelos teco-tecos. O marechal foi um cruzado em defesa dos nossos índios. Eu, como ele, sempre achei que os índios precisavam de proteção contra os brancos. Ele mesmo parecia um índio fardado, embora a sua farda, por todos os títulos respeitável, cheirasse ligeiramente a urucum. Mas voltando à vaca fria, como anda a sua depressão? Nem queira me contradizer porque eu ouvi sua conversa com o Dr.... (o fantasma disse o nome de um dos palestrantes que além de escritor é psicólogo, razão por que o chamava de doutor).  

- Acontece que a conversa foi sobre um fato inexistente – tentei explicar ao fantasma. – Não sei por que motivo o doutor, como você o trata, enganou-se sobre o que conversou comigo. Nunca houve o que ele pensa que houve. Eu nunca estive deprimido... 
   
- Você não me convence – protestou o fantasma despejando em minha cara seu bafo tumular. – Eu ouvi tudo ao seu lado, invisível, e me pareceu uma conversa bem normal.   

- Foi e não foi... – disse eu. 

- Foi e não foi? 

- Foi para o doutor, não para mim.  

- Explique-se melhor, meu digno, para que eu também possa aquilatar o seu devido estado mental – pediu o fantasma. 

Então expliquei, e, explicando, explico a explicação explicada. 

Antes de começar a palestra, o doutor (continuemos chamando-o desta forma), movido pela generosidade que dispensa aos seus amigos, veio me pedir desculpas pelo comportamento que teria tido para comigo numa reunião social, para mim completamente esquecida, em que eu lhe teria manifestado o desejo de consultá-lo como psicólogo e ele não teria me dado a atenção que eu merecia. Cumulava-me de desculpas para remediar o que alegava ter sido uma indelicadeza da sua parte ao mesmo tempo em que me instava a procurá-lo.

- Não deixe de ir ao meu consultório. Vou lhe aplicar uma regressão mental, por meio de um processo infalível de hipnoterapia, que você vai acordar outro.  

- Outro como? – perguntei. 

- Completamente bom. Em apenas uma hora eu atuo hipnoticamente sobre suas ondas cerebrais de forma indolor e inconsciente, desencadeando... – e continuou descrevendo o processo de intervenção psíquica que adotaria para curar a minha depressão como um Dr. Voronoff de vanguarda da psicanálise.  

– Não há o risco de não se voltar da hipnose? – perguntei desconfiado.

– Até hoje nunca perdi um paciente. Todos retornam ao estado pré-regressivo e, o que é melhor, curados.  

– Retornam sem tonteiras ou vômitos? 

– Acordam bem dispostos e satisfeitos, com o psiquismo reequilibrado. 

Confesso, pelo quadro descrito pelo meu querido amigo que meu caso, se fosse o de uma depressão merecedora do tratamento que me era sugerido, me parecia de extrema gravidade. O doutor concluiu passando-me dois cartões com seu endereço profissional: um azul, outro, branco.  

- O que vale é o branco, que tem o endereço e os telefones certos. O outro está errado, mas eu o entrego junto porque informa a minha especialidade.  

- E qual é a especialidade dele? – perguntou o fantasma curioso.
    
Tirei do bolso o cartão azul e li as qualificações que nele se continham: depressão, fobias, síndrome do pânico, regressão, psicoterapia individual e de casais, insônia, doenças psicossomáticas, neurastenia, dependência de drogas, problemas de aprendizagem e de memória, psicodiagnóstico, distúrbios do comportamento, da personalidade e da sexualidade.  

- Vejo, meu ínclito, que seu caso é mais sério do que o que eu imaginava – comentou o fantasma estampando certo ar de piedade no ectoplasma facial, devolvendo-me o cartão informativo. 

- Não julgue a minha saúde mental pelas especialidades do meu amigo – adverti-o brandindo o cartão nas pontas dos dedos.
  
- Mas pelo sim, pelo não, você deve procurá-lo. Com depressão não se brinca! 
 
- Mas já disse, meu digno fantasma, que nunca estive deprimido! 

- Então por que doutor foi lhe pedir desculpas? 

- Talvez por um engano de memória e eu fiquei chateado de dizer que o encontro a que ele se referia nunca existiu. Para deixá-lo mais tranquilo eu lhe disse até que estava melhorando... Lembra-se disso? 

 O fantasma me olhou incredulamente e comentou: 

- É verdade, você disse... E mais do que nunca concluo que você deve consultar o homem com urgência, pois, a mim me parece, apesar de não ser nenhum Freud, que sua negada depressão o está levando a um perigoso grau de alienação... Eu conheço um sujeito que só admitiu estar deprimido depois de saltar de um edifício e virar fantasma como eu. Não se descuide, meu digno, não se descuide!

Mal fizera essas observações, o fantasma sumiu da minha vista pouco antes da chamada para o início das palestras sobre a ficção e a realidade na Literatura.

 Quanto a mim, deixei-me abater pela miserável sensação de que estava de fato sofrendo de uma depressão tão aguda e imperceptível que tinha até me esquecido do encontro em que sobre ela conversei com o doutor meu amigo, numa reunião social que se eclipsara por completo da minha mente.  

Serei eu um depressivo desmemoriado, condenando a não ter cura?

 

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