O fantasma no parque

Conto o que vou contar porque assisti ao meu amigo escritor e cinegrafista perguntar ao fantasma do centro histórico de Vitória:

– Faz muito tempo que o senhor está morto?

– Perto de 70 anos, meu digno – disse o fantasma. – Veja como os meus sapatos estão rotos do sal da terra. Estou enterrado, quer dizer, meus ossos estão enterrados no cemitério de São Benedito do Rosário, onde repouso embora sem a paz que eu muito desejaria. Já vê vosmecê que eu pertencia a essa vetusta irmandade de Vitória. Apareça quando puder para fazer uma visita ao meu carneiro. É o de número 100, à esquerda de quem entra. Não precisa levar flores, basta rezar um Padre Nosso, na forma antiga que dizia “perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores” – recomendou o fantasma. – E não se esqueça: cemitério da irmandade do Rosário, em Santo Antônio.

– Então o senhor era um peroá? – indagou meu amigo, mostrando conhecimento da história de Vitória, sem querer perder a chance de papear com um fantasma.

– Peroá legítimo, de carregar a charola de São Benedito nas procissões do dia 27 de dezembro pelas ruas do centro da cidade. Ruas atapetadas com folhagens em frente de casas com toalhas de linho penduradas nas janelas – respondeu o interrogado.

Aqui se faz necessário voltar à origem desta conversa.

Foi de repente que o fantasma nos apareceu. Até então somente eu tinha tido a faculdade (não digo o privilégio) de esporadicamente me defrontar com a fantasmal figura.

Eu e o meu amigo tínhamos combinado fazer um vídeo em comemoração ao centenário de inauguração do Parque Moscoso e nos mandamos para umas tomadas no Parque e nos seus arredores. E nos arredores estávamos – para ser preciso, na diminuta Rua José Bonifácio onde, por sinal, eu nasci – quando o fantasma nos flagrou.

Foi tão repentina a sua aparição que eu não saberia dizer se ele desceu do morro da Santa Clara, pela escadaria Santa Cecília, ou se baixou do morro do Moscoso. O fato é que pousou na nossa frente e eu, educadamente, o apresentei a meu amigo.

– Muito folgo em conhecê-lo, meu digno – disse o fantasma, escusando-se, porém, de segurar na mão que meu amigo desembaraçadamente lhe estendera. – E ainda que mal pergunte, o que os dois ínclitos cidadãos vieram fazer por essas plagas?

Expliquei ao fantasma o nosso objetivo naquela manhã de sábado ensolarado.

– Quer dizer que esse tripé que seu amigo está carregando é uma máquina filmadora? Pois eu juraria que se tratava de um teodolito – disse o fantasma dando-se o prazer de esboçar um riso, ou melhor, um semi-riso sem ser um sorriso, na direção do meu amigo. 

– Não foi só você que se enganou com a filmadora – disse eu. – Ainda há pouco passou por nós um senhor que perguntou, por zombaria, se estávamos medindo a calçada.

– Medir a calçada! Isso me faz lembrar quando estas ruas perto do Parque foram abertas – disse o fantasma pegando o tema no ar. – Tem mais de cem anos e parece ontem! Eu vi a dificuldade, naquela época, para levantar as coordenadas para o alinhamento das quadras. Aqui onde estamos surgiu a Vila Militar. Havia casas para oficiais e casas para sargentos. As dos oficiais eram maiores, mas todas eram moradias sólidas e boas. Obra de Jerônimo Monteiro. Ou terá sido de Marcondes de Souza?  Vosmecês me desculpem, mas às vezes minha memória claudica. Coisa de morto. Um dia vosmecês vão ver como é. E sabem por que esse bairro começou como uma vila militar?

– Graças ao quartel da Polícia – adiantei-me cortando ao fantasma a satisfação de, em fazendo a pergunta, dar a resposta.

– Isso mesmo. O quartel foi a mais notável edificação que já existiu no Parque Moscoso, antes até de o Parque ser criado. Sua inauguração foi em 23 de maio de 1896, no governo de Muniz Freire (lembro porque estive presente, num dia tão bonito quanto hoje). O primeiro comandante foi meu dileto amigo o coronel Orozimbo, gratíssima persona, gente da melhor honradez. Eu tive um parente, o tio Anselmo, que na festa da inauguração tocou tumba na banda da Polícia.

– Era uma bela construção... – disse eu concordando com o fantasma.

– O quartel era de pedra, com ameias no alto, janelas amplas, pátio interno largo e arejado... Um crime a sua demolição – continuou o fantasma em sua arenga. – Ainda bem que eu já estava morto quando ele foi posto abaixo. Porque senão eu ia deitar o verbo sob suas arcadas e quem quisesse perpetrar o crime que perpetraram teria de passar por cima do meu cadáver... Pode parecer engraçado que eu fale assim hoje, que estou morto, mas era o que iria acontecer, eu lhes afianço, meus dignos. O mais incongruente é que puseram abaixo o quartel com toda a sua nobreza arquitetônica, deixando o inexpressivo Corpo de Bombeiros na parte de trás. Ah, seu eu estivesse vivo!... E já que estamos relembrando velhos tempos, parados aqui nesta esquina da Rua José Bonifácio com a Rua Henrique Moscoso, me respondam, se souberem: como era o antigo nome da Henrique Moscoso? Vosmecê sabe?

Apesar de ter dirigido inicialmente a pergunta a mim e ao meu amigo, foi a este que o fantasma dedicou o seu arremate.

– Ignoro a resposta – admitiu o perguntado.

Antes que eu dissesse qualquer coisa, o fantasma cantou de galo: – Dona Julia! Chamava-se Rua Dona Julia, nome tirado da consorte de Henrique Coutinho, que foi prefeito de Vitória. Gente da melhor honradez.

– Quer dizer que primeiro foi o nome da mulher e depois o do marido? – estranhou meu amigo.

– Assim se tecem as histórias das cidades... – limitou-se a responder o fantasma. – Mas não se prendam por minha causa. Hoje eu estou demasiado loquaz, enquanto vosmecês têm tarefas por fazer. A não ser que queiram que eu os acompanhe para dar informações sobre o passado deste arrabalde. Eu me lembro de cousas que nem Jerônimo Monteiro, que inaugurou o Parque em 1912, deve se lembrar. Vejam o caso da caixa d’ água da Santa Clara. Ninguém fala mais nela. Mas sem a caixa, que ainda está aí, basta subir pela escadaria para ver, a Vila Militar não teria água a domicílio. Nem o quartel de Polícia. Nem o Parque, para jorrar nos seus repuxos. E por falar em água, estão vendo aquele prédio de três andares? Embaixo dele passa um córrego que vem de uma nascente aí no morro, canalizado como esgoto. Quem sabe disso? Quem? Só eu sei! Portanto, podem contar comigo se quiserem. Eu tenho todo o tempo do outro mundo para falar das histórias da cidade.

Com jeito para não decepcionar o fantasma, declinei da sua prestativa oferta. Despedimo-nos ali mesmo.

– Como fala esse espírito! – comentou meu amigo depois que o vulto desapareceu da nossa frente.

– Bata na madeira do “teodolito” para que ele não nos reapareça adiante... – disse eu, que já conhecia o personagem de outros encontros e reencontros.

Meu amigo bateu três vezes com o nó do dedo no tripé de sua filmadora enquanto apressávamos o passo. O Parque Moscoso nos esperava para ser filmado e estávamos ansiosos por fazê-lo.

 

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