– Há muito tempo que você está na fila? – perguntou o paralelepípedo.
– Cheguei um pouquinho antes de você – respondeu o livro. – Como eu quis pegar o primeiro lugar, acordei cedo e ripei pra cá. Ainda havia lua no céu, branca e redonda como queijo de Minas. O primeiro bonde de Jucutuquara estava passando pela Paulino Muller, e por pouco me atropelou. Eu vinha bastante afobado, com minhas páginas ao vento. Dei sorte.
– De não ser atropelado?
– De chegar antes de você.
– Deu mesmo. Eu saí de um monte de paralelepípedos vindos da pedreira do Saldanha para calçar uma rua perto da Escola Técnica. Vim chispado para ser o primeiro da fila, mas meu peso não deu pra competir com o seu – explicou o paralelepípedo.
– É a guerra, esta maldita guerra que chegou a Vitória – intrometeu-se na conversa o abajur que morava em frente ao estádio e era o terceiro da fila. – Para mim é um sacrifício acordar de madrugada. Nesse horário ainda estou apagado e vir pra cá é sempre uma tortura. De ontem para hoje foi pior...
– Por quê? – quis saber o paralelepípedo. – Para mim é sempre pior...
– Pior por causa do blecaute, você se esqueceu? Com o blecaute decretado ontem, fiquei desligado por mais tempo. Quando isso acontece, mergulho num sono pesadíssimo.
– Você não acorda nem para ver os holofotes? – perguntou o livro.
– Fico sabendo deles no dia seguinte – respondeu o abajur.
– Pois você não sabe o que perde. Os holofotes são a coisa boa dos blecautes, cruzando seus fachos luminosos na noite de Vitória – comentou o livro.
– Eu ouvi dizer que os holofotes são um treino para pegar avião alemão, embora não acredite que nenhum deles vai sair da Alemanha para atacar Vitória. Vê se isso tem cabimento! – foi a vez de meter o bedelho na conversa a cadeira de balanço, quarta colocada na fila da carne do açougue do Sizino.
– Ouça, minha senhora: pelos conhecimentos que eu tenho deve-se esperar tudo da Alemanha, ainda mais depois que o Brasil entrou na guerra – disse o paralelepípedo com sua voz rouquenha.
– Não são apenas os aviões... Tem também os submarinos que foram vistos rondando Guarapari... – lembrou o livro.
– É por causa da areia monazítica – acrescentou o paralelepípedo. – Em matéria de pedras e minerais eu sei o que digo.
– Dizem que eles querem extrair energia da areia, depois que a Mibra descobriu a mina... – apoiou o abajur.
– Eles quem? – indagou a cadeira de balanço.
– Os boches, dona cadeira, os boches! – esclareceu o livro.
– Foi na banca de jornais do Camundongo que eu ouvi que eles querem fazer bombas com as areias de Guarapari – indicou o abajur sua fonte de informação.
– Bombas que depois vão jogar sobre o cais do Pela Macaco de onde sai o minério de ferro para os americanos – concordou o paralelepípedo.
– Em tempo de guerra, boatos como terra – proverbiou com o seu ceticismo a cadeira de balanço, esboçando uma careta de descontentamento. – É por isso que não acredito em tudo que andam dizendo... Avião e submarino alemão rondando por aqui, vê se é possível? Fazer bomba das areias de Guarapari, como é que pode?
– Mas a senhora não há de negar que estamos vivendo uma economia de guerra – comentou o paralelepípedo pondo-se em posição discordante da cadeira de balanço.
– Não se trata disso, porque eu jamais negaria o óbvio. Se eu negasse, não tinha como explicar a minha presença nesta fila de racionamento da carne. Se para o senhor (a cadeira se dirigia ao paralelepípedo) é difícil chegar até aqui, devido ao seu peso, imagine para mim, que venho me balançando devagar...
– Não é só a fila da carne... Tem a do açúcar, e a do pão, devido à falta de trigo importado... Sem falar na gasolina racionada. Ainda há pouco, quando eu vinha para cá, vi passar em frente do mercado São Sebastião um caminhão a gasogênio – disse o livro exibindo seu espírito de observação.
– Os ônibus também estão com chaminé na traseira para dar saída à fumaça – disse o paralelepípedo. – Parece que o gasogênio, à base de carvão, veio para ficar. Pelo menos enquanto durar a guerra.
– Os senhores me entenderam mal – defendeu-se a cadeira de balanço. – Eu sei que estamos em guerra e que ela impõe muitos sacrifícios. Mas não é por isso que vou aceitar como vaquinha de presépio qualquer lorota que queiram enfiar pelos meus ouvidos.
– Que lorotas? – indagou o livro com indisfarçável escárnio.
– Lorotas sim. Vejam o caso do ferro-velho. Vocês acreditam que foi para valer a campanha que recolheu ferro velho da população, pra fazer canhão e avião pros aliados? Uma potoca! Toda aquela ferraria enferrujada, recolhida em bandeiras do Brasil, ficou amontoada na Praça Oito e depois, de noitinha, deve ter sido jogada na maré...
– Me diga uma coisa, dona cadeira de balanço – contrapôs o paralelepípedo. – Apesar de toda a sua descrença a senhora acha que o torpedeamento dos navios brasileiros foi obra dos americanos só para o Brasil entrar na guerra?
– Boa pergunta – endossou o abajur, que começava a não controlar a antipatia explícita para com a cadeira de balanço.
– Se foi obra dos americanos ou dos alemães eu não sei – respondeu a cadeira. – Mas eu penso – e vocês podem não concordar comigo – que a entrada na guerra não trouxe nenhuma vantagem para nós, nem para os Aliados. O que o Brasil ganhou? Um cemitério de pracinhas em Pistoia? E ainda tapearam o povo com aquela conversa mole de que a cobra está fumando. Fumando pra cima de quem, me respondam.
– Fumou pra cima dos gringos – disse o abajur convicto. – A senhora se esqueceu do quebra-quebra das lojas de Vitória e Vila Velha?
– E o senhor considera justo o que fizeram? – perguntou a cadeira de balanço, que por sua vez não estava vendo com bons olhos as intervenções do abajur. – Até a fábrica de bombons Garoto quase foi depredada. Um bombom tão querido pelos capixabas. No interior do Estado a perseguição também foi feia. Quantos descendentes de italianos e alemães não tiveram de se esconder às pressas, para salvar a pele? Para mim foi uma patriotada que varreu o Brasil de forma estúpida e covarde.
– A senhora é uma cadeira de balanço austríaca, não é? – atacou o paralelepípedo.
– Hitler também era austríaco – acresceu o livro.
– Eu sei o que os senhores querem insinuar. Mas fiquem sabendo que se minha família é austríaca eu sou uma brasileira legítima.
– Se eu não a conhecesse aqui da fila do Sizino diria que a senhora tem espírito de quinta-coluna – observou o abajur sem conter a xenofobia.
– Os senhores estão completamente enganados a meu respeito. O que acontece é que eu sou justa e tenho coragem de dizer o que penso. Na verdade, detesto a guerra pelo mal que ela traz pra todo mundo. Por causa dela estamos nesta fila e ainda por cima travando uma discussão irritante, enquanto o Sizino não abre. Os senhores já pensaram nisso?
– Falar em abrir, ele já está abrindo – disse o paralelepípedo aliviado com o rumo que a conversa estava tomando.
– Ainda bem porque vou comprar o meu quilinho de alcatra e voltar logo para a minha casa. Se os senhores não o comprarem antes... – disse a cadeira de balanço encerrando, de cenho fechado, a conversa na fila do Sizino.
Inspirado na crônica As velhas filas da carne e do açúcar, de Roberto Mazzini, publicada neste site. Para ler, acesse aqui.