Eu no lixão de livros

Vi a notícia na televisão - um monte de livros jogados fora, por obra e sobra de uma faxina feita no Centro Cultural Carmélia Maria de Souza, na cidade de Vitória.

Uma senhora, entrevistada no local, rebelava-se contra o que dizia ser um atentado à cultura e um crime contra a educação (havia até livros didáticos dentre os descartados) recolhendo ao acaso os que a interessaram para salvá-los do despejo. “Já que foram pro lixo vou levar alguns. Tem obras de autores consagrados como Darcy Ribeiro, e de escritores capixabas”, foi o que ela disse revoltada, senão com estas palavras, pelo menos com esse juízo de valor.

Mas o que despertou a minha curiosidade durante a reportagem foi saber se eu, ou seja, se algum dos meus livros estava dentre os arremessados fora, não pela referência da entrevista aos autores consagrados, mas pela menção que ela fez aos escritores capixabas. Foi isso que me pôs alerta, com olhos de tocaia, enquanto a reportagem focalizava as obras espalhadas na calçada, ao lado do Centro Cultural que, por sinal, estava com o portão de ferro bem fechado para simbolizar que os autores dali alijados não tinham a menor chance de retorno. O Centro Cultural lhes cerrava as portas.

E apesar de o passeio da câmera sobre os livros ter sido relativamente rápido, eu tive a impressão de reconhecer a capa prateada da segunda edição do meu romance A Nau Decapitada, naufragado no monturo das obras atiradas pelo chão.

A certeza, porém, de que me encontrava dentre os livros descartados somente se confirmou no dia seguinte quando meu neto, de onze anos, me deu a notícia como se fosse em primeira mão: “Vovô, jogaram um livro seu no lixo, aquele que tem o desenho de um navio na capa. Deu na televisão”.  

Confirmado assim o que eu tive a impressão de ter visto na TV, caí em considerações.

A primeira delas, o que é perdoável, foi ditada por um princípio de revolta, a exemplo da que se abateu sobre a senhora da reportagem. “Tanto esforço para escrever um romance para ele acabar encalhado no meio de um lixão de livros! Que cultura é esta?”, pensei desconsolado.

Mas acudiram-me logo outros pensamentos, mais condescendentes e moderados: “Não seria o lixão o lugar que o meu romance merecia desde que fora publicado? Se assim era, como tudo parecia indicar que fosse por quem o arremessara fora, que mão tardia foi a que somente quase trinta anos decorridos da primeira edição teve a coragem de jogar o romance onde deveria ter sido jogado desde o começo? E por causa disso, será que o dever não me impunha o encargo autoral de saber quem foi o responsável por essa atitude a fim de conhecer as razões, certamente criteriosas, que a teriam motivado? Em que pontos eu teria falhado como autor? Na fabulação do enredo? Na linguagem narrativa? Na abordagem da temática histórica? Que recomendações, enfim, me poderiam ser apresentadas em benefício do meu estilo literário?”

É óbvio que tais recomendações me deviam ser passadas trinta anos atrás. Mas como nem sempre se faz tarde para uns bons conselhos, desde que pedidos, eu os peço agora, humildemente. Pois a tanto me impõe minha condição de escritor: saber por que fui jogado no lixão de livros, na faxina profilático-literária do Centro Cultural Carmélia Alves de Souza. Quando nada, pela obrigação moral de dar ao meu neto uma explicação satisfatória, para que ele possa avaliar as razões pelas quais fui condenado como escritor.  

Já estou até me vendo a lhe dizer, cabisbaixo: “Seu avô foi pro lixo porque ...”

Com a palavra os meus lixeiros.

 

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