A sombra

Tem gente que não liga para a sua sombra. Eu ligo. Gosto de vê-la projetada no chão, em contradança em torno do meu corpo, ora de um lado, ora do outro, às vezes alongada, às vezes diminuta, mas sempre grudada aos meus pés. Para onde vou, ela vai comigo, numa submissão de tapete.

Como bons amigos, aprecio revê-la quando o sol permite apesar de não ter o hábito doentio de olhá-la a todo instante porque não é cabisbaixo que normalmente ando. Só de vez em quando é que atento para a sua existência, recorte do meu corpo, silhueta de mim mesmo, que comigo se desloca, inseparável e muda.

Não é, porém, pela sua presença constante ou pelo seu mutismo permanente que eu a reconheça como a minha sombra, mas pelo seu contorno figurativo, que reproduz o meu corpo, o que possibilita sua fácil identificação comigo mesmo.

 “Essa que aí vai no chão sou eu”, posso dizer sem medo de errar. O jeito da cabeça é o jeito da minha cabeça; a forma do pescoço é a forma do meu pescoço; o balançar dos braços é o jogo dos meus braços; as mãos que eu abro e fecho, contra a luz do sol, mostram os dedos que são os meus dedos abrindo e fechando para o teste da similitude comigo mesmo. A minha sombra, toda ela dos pés à cabeça é tal e qual o modelo original que a provoca, a figura por inteiro que eu sou, em negativo. 

Até o seu modo de andar, nem sempre muito perceptível numa sombra, é o mesmo modo que eu tenho de andar, passada após passada: se alargo uma delas, minha sombra também a alarga; se a encurto, ela encurta a sua, que é a minha.

Estou assim contido em minha sombra que interage comigo em gestos de fidelidade simultânea.

É muito importante o que acabei de escrever: gestos de fidelidade simultânea por ser a qualidade primeira das sombras - a simultaneidade do que fielmente reproduzem. E embora a minha sombra não exprima a minha imagem com a nitidez de um espelho, isso não subtrai o valor de representação correta que, em penumbra, ela reproduz de mim. O que importa é que a reprodução não contém um traço a mais ou a menos dos que em mim são encontrados. Dessa fidelidade é que sublinhei a importância.

Imaginem assim os que me leem o assombro de que fui tomado no dia em que percebi que minha sombra não era mais a minha sombra.

As diferenças saltavam à vista: no formato da cabeça, no traçado do pescoço, no delineamento dos braços, no desenho das mãos. Até o modo de andar era diferente, ainda que para notar esse detalhe fosse necessário certo grau de acuidade. Mas eu notei. Por alguma razão que foge ao meu entendimento, a minha sombra não andava como eu costumo andar. Ela estava dotada de um estilo diferente, que não sei descrever e que não era o meu jeitão pessoal de ir e vir, movendo-se de uma forma que contrariava o princípio da fidelidade das sombras que há pouco eu elogiava.

Que sombra era aquela, então? De onde saíra ou saía?

Essas perguntas me levaram a outra dúvida: mudara eu ou mudara a minha sombra?

Sei, como toda gente sabe, que a vida é cheia de imprevistos e que as pessoas mudam enquanto vivem. Mas mudanças de sombras, que se diferenciam das suas fontes de origem, nunca eu soube que acontecessem a quem quer que seja. Seria o meu o caso primeiro?

Ora, dirão os que dirão: que assunto mais sem nexo para uma crônica! Pois assim dizendo, tocam no cerne da questão.

É por causa do nexo perdido entre mim e a minha sombra que estou querendo entender o que aconteceu conosco. Espero encontrar uma resposta lógica para explicar o fenômeno antes que eu comece a andar de olhos doentiamente postos no chão para ver quando a minha sombra (a legítima) voltará a ser a mesma debaixo dos meus pés, e não um elo perdido do meu corpo.

Ao conseguir a resposta eu prometo voltar com uma crônica menos fantasiosa do que esta, tendo por tema o homem que, para sua felicidade pessoal, recuperou a sua verdadeira sombra.

 

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