Morte na montanha

 (para Reinaldo, numa remissão ao conto Mistério na montanha)

Eu sou a última palavra que Nicolás de Hoyos disse antes de morrer.

Como toda e qualquer palavra, fui proferida por sua língua, órgão do corpo humano sem o qual as palavras são impronunciáveis. Só que, numa exceção à regra, eu não provim inicialmente da língua de Nicolás de Hoyos, mas dos seus olhos. Foi do que ele repentinamente viu à sua frente – a mão com o revólver assomando à janela do carro – que eu me fiz vocábulo no idioma que ele falava: “carajo!”.

Não foi a primeira, nem a última vez que frequentei a boca dos espanhóis de Sebastopol, ou dos demais hispânicos que costumam visitar a cidade. Sobretudo na zona do meretrício sou boquejada a toda hora em tons e semitons de muitas sonoridades. Mas quando Hoyos me soltou ao vento naquela noite fria na montanha, eu me vi pela primeira vez diante de um cano de revólver que dava a impressão de me visar com seu olho mau, pronto para me abater em pleno voo como se abate um pássaro. E posso dizer que foi por pouco porque assim que fui pronunciada uma das balas enveredou pela boca de Hoyos rompendo-lhe a língua, antes de vazar pela culatra da sua nuca.

Apanhado de surpresa quando saía do bar Moritz em companhia de um amigo, Hoyos não teve escapatória. Soube que ia ser morto antes que a morte se instalasse em seu corpo. E proferiu o palavrão – que sou eu – antecipando-me ao clarão dos tiros que o emudeceram para sempre. Um pipocar estúpido que, por pouco, impediu que eu fosse enunciada. De forma trágica, adquiri vida graças a quem morreu logo em seguida.

Tudo foi muito rápido e, ao mesmo tempo, semelhante a uma cena em câmera lenta: o carro que surgiu de repente; o vidro que desceu para dar passagem à mão de Hastaluego; o disparo do revólver; os clarões com os seus pipocos.

Ainda que seja suspeita para falar, acho que eu era realmente a expressão exata para aquele momento de terror angustiante. Num lapso de percepção que emergiu do subterrâneo do seu cérebro, Nicolás de Hoyos compreendeu que só lhe restava dizer o que disse com a força de um impropério. 

Da minha parte, atendi ao seu chamado, fazendo-me presente em sua voz. Não podia negar a Hoyos o apelo vocabular que me era solicitado, no mais crucial momento de sua vida. Entendi que me cabia cumprir uma missão de caridade, e a cumpri, certa de que nenhuma outra palavra mais longa do que eu se completaria a tempo na boca do assassinado. Era eu ou o silêncio mortal, disso estou convicta.    

“Socorrame, Dios” seria uma frase impensável para Hoyos, um ateu confesso chegado aos pecados do mundo e das putas. Uma invocação dirigida a Santiago de Compostela também seria esdrúxula e improvável, um rogo fadado a ficar pelo caminho. Se Hoyos dele tivesse se valido, o que não é de se crer devido ao seu apregoado ateísmo, talvez não chegasse ao go de Santiago.  Os tiros o calariam antes.

Poderia ter sido “mierda” a última palavra de Nicolás de Hoyos, ou, quem sabe, “perro”.

Mas mierda perde para mim de longe. Quanto a perro até que tinha mérito para ser a escolhida, sendo silabicamente mais curta do que a palavra que eu sou, com a vantagem de qualificar, numa chibatada verbal, a pessoa infame do escritor Hastaluego, o assassino sorrateiro.

O que explica então que tenha sido eu a preferida?

Com Hoyos morto, somente posso especular. E no espaço em branco em que as interpretações são possíveis, penso que sendo Nicolás de Hoyos o jornalista familiarizado com o peso e o contrapeso das palavras, tenha recorrido a mim no seu desenlace de vida por uma questão absurdamente literária. Pensamento ridículo, por certo. Mas é como consigo ver a coisa, pois, modéstia à parte, não se pode negar que a palavra que eu sou tem mais expressividade do que a de qualquer outro termo que Nicolás pudesse usar naquelas circunstâncias. Sem contar que sou de promíscuo uso popular em castelhano.

Nicolás juntou assim ao sentido chulo da expressão que em mim sabidamente se contém o alto teor de imprecação literária que, paradoxalmente, em mim se embute. Depois que me pronunciou, ele podia morrer em paz: tinha dito o máximo que lhe fora permitido, num mínimo de vocabulário admissível.

Digo isso sem querer puxar a brasa para o meu lado. Lamento apenas que para dar mais ênfase a sua última palavra, Nicolás de Hoyos não me tivesse pronunciado em português.

 

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