Nossos sombrios urubus

Na 29ª Bienal de Artes de São Paulo (ano 2010) havia três urubus integrando a obra Bandeira Branca, do artista Nuno Ramos. Por determinação judicial as aves foram recolhidas do meio ambiente artístico e devolvidas ao meio ambiente natural, de onde nunca deviam ter sido retiradas segundo as regrinhas básicas das cartilhas ecológicas.

Não é a primeira vez que urubus entram, por vontade alheia, em obras de arte no Brasil. No quadro de Pedro Américo, inspirado no grito da independência dado por D. Pedro às margens do Ipiranga, lá está, quase imperceptível, no lado esquerdo do quadro, um indiferente e plácido urubu em pleno voo - voo livre prenunciando os primeiros lances da nossa brasílica independência.

Pedro Américo terminou a tela, que foi um trabalho de encomenda, em 1888. O sentido de exaltação patriótica da obra salta aos olhos. O pintor se deu asas de liberdade artística para exaltar a liberdade política que o Grito do Ipiranga decretou.  Mais de 60 anos haviam se passado entre o fato histórico e a sua versão colorida, que se tornaria emblemática: a independência da jovem nação representada numa vigorosa cena equestre com um líder resoluto, de espada erguida para o alto, imitado no gesto heroico pela tropa que formava sua guarda marcial.

No recanto ínfimo do quadro, abaixo das patas dos cavalos exasperados, aparece uma nesga de água para dar o ar de sua graça e marcar a geografia do acontecimento histórico. São as mansas águas do Ipiranga, testemunhas auditivas do retumbante brado principesco. Todo o quadro é de fazer pulsar fortemente os nossos patrióticos corações verde-amarelos.

Mas Pedro Américo não se limitou a dar ênfase ao núcleo épico da cena da independência, nem lhe bastou indicar o riacho do Ipiranga como digital geográfica do acontecimento que representou na tela.  Foi além. Quis mostrar um pouco mais do Brasil da época, de um Brasil brasileiro que pontuou figurativamente pelas bordas do seu quadro. Eis porque recorreu ao carreteiro com o carro de boi que desce em direção às águas do Ipiranga; ao cavaleiro solitário, que, de passagem pelo local, viu-se convertido em testemunha do brado heroico; às duas diminutas figuras, um pouco mais acima do itinerante cavaleiro, que também por acaso, viram, pela visão de Pedro Américo, o momento auspicioso da independência; à casa de pau-a-pique que ficaria celebrizada como a Casa do Grito; às bananeiras tão brasileiras, por trás dessa casa de arquitetura tosca; e até ao urubu de que falava eu, exposto em voo plácido no céu plácido daquele instante histórico, às margens não menos plácidas de um regato modorrento.

Eis o conjunto da obra em descrição sumarizada, aberta a vários tipos de interpretação (e gente mais apta e perspicaz do que eu já explorou o tema): ao pintar o Grito da Independência, Pedro Américo contrapôs à cena épica e nuclear de D. Pedro com os seus dragões acavalados, o cenário periférico de um Brasil em seu cotidiano primitivo, ainda pesadamente colonial e bruto, mas tranquilo de vida e ignorante de futuro. Tudo muito transparente e expressivo.

Mas precisava do urubu? 

Julgo que sim porque o urubu completa a brasilidade simbólica da pintura, tanto quanto os outros elementos figurativos nela introduzidos. E duvido mesmo que no momento crucial do Grito não houvesse urubus voando sobre as margens do Ipiranga, talvez até espantados pelo alarido desafiador dos cavalarianos agitados.

Se para quem sabe ler um pingo é letra, aquele urubu de Pedro Américo não entrou no quadro à toa. Ele tem um significado especial, transmite uma mensagem a latere. Eu, pelo menos, vejo nele o lado negro de um Brasil pejado de vícios e mazelas, um Brasil-urubu de desigualdades, corrupção e atraso, afogado em injustiças e explorações sociais.

Por muito que enchamos os pulmões e gritemos a uma só voz xô, urubu!, ele parece resistir a nossa vã tentativa de  bani-lo do nosso céu azul celeste como foram banidos de onde estavam os três urubus da obra da Bienal de São Paulo.

Para esse urubu-rei que permeia a nossa história não há príncipe encantado que o abata. Pedro Américo o caracterizou para sempre em seu quadro memorável. 

 

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