Enquanto o professor Gabriel falava sobre a viagem de Pedro II ao Espírito Santo, em 1860, eu fui até a mesa posta num canto do auditório do Instituto Histórico para tomar cafezinho e comer biscoitos de polvilho. Dali, podia ver e ouvir o orador perfeitamente.
Ao morder o primeiro biscoitinho, o fantasma do centro histórico da cidade me apareceu, risonho e franco.
- Enfim, uma justa homenagem aos 150 anos da vinda de D. Pedro ao Espírito Santo. Parabéns, meu digno!
- A iniciativa não foi minha.
- Pouco importa. Fico feliz de depará-lo aqui. É a prova cabal de que você reconhece que uma grave omissão está sendo remida neste augusto auditório. (O fantasma abriu os braços num gesto largo que abarcava o auditório como se estivesse à vontade, em sua própria casa). Depois, fuzilou:
- A propósito, você sabe o que D. Pedro II vomitou em Santa Isabel?
Eu já aprendera que o fantasma era daquele jeito – inesperado e abrupto em suas intervenções. Para que ele não elevasse a voz e perturbasse a solenidade em andamento, dei-lhe corda, mas falando baixinho:
- Como posso saber uma coisa dessas, fantasma?
Que o imperador havia passado mal, na colônia alemã de Santa Isabel, eu sabia. O próprio soberano registrara em seus apontamentos de viagem: “vomitei mesmo a cavalo”. Mas saber em que consistiu a gosma imperial era pretender muito de um professor aposentado.
- Pois eu sei – disse o fantasma cheio de si despejando em meu rosto seu hálito fermentado. – Foi chucrute e salsichão!
- Como você sabe disso? – indaguei, curioso.
- Meu bisavô, que estava na comitiva do imperador, contou a meu avô, que me contou. Ele foi testemunha ocular da indigestão.
O ar de superioridade do fantasma dilatou-se mais ainda ao me dar a informação. Era como se me desafiasse: - Você põe em dúvida minha fonte informativa?
Eu não a punha em dúvida. Eu simplesmente tentava absorver o quadro indigesto que me era pintado, enquanto o fantasma se deleitava com o privilégio de dispor de um dado histórico que ninguém no Espírito Santo possuía. Nem Levy Rocha, que pesquisou a fundo a visita do imperador às terras capixabas. Ou será que o orador estava comentando algo sobre a indisposição sofrida por D. Pedro?
Com a capacidade que Deus me deu de ouvir um assunto por um ouvido (que dava atenção ao fantasma) e ouvir outro, pelo outro, estiquei um dos meus canais auriculares até o conferencista para pescar alguma possível referência que tivesse relação com o dado que o fantasma me passara em primeiríssima mão. Mas o orador, com o seu peculiar brilhantismo, navegava em outras águas.
Em síntese: a partir daquele momento, somente eu, um historiador desgastado, tornava-se detentor da informação privilegiada que causara o mal-estar de D. Pedro, em sua viagem ao Espírito Santo.
O que fazer com a revelação foi o impasse que imediatamente me acudiu. Deveria interromper o orador, pedindo licença para divulgar a grande novidade, ou me reservar para propagá-la em outra ocasião?
Cautelosamente, me contive. Se para mim a minha fonte de informação era segura e confiável, para o mundo acadêmico e historiográfico ela seria risível, o que me condenaria ao ridículo. Resolvi fazer boca de siri.
- Então? – perguntou o fantasma. - Não vai divulgar o que eu lhe disse? Este é um momento propício pelo tema que está sendo prelecionado, pelo local em que é prelecionado e pelo orador que o preleciona.
Expliquei ao meu interlocutor que eu precisava examinar o assunto com mais calma, aprofundar pesquisas culinárias, consultar o mestre historiador Fernando Achiamé... Tudo desculpa furada, bem se vê.
O fantasma, porém, aceitou minha proposta, contra uma ameaça declarada:
- Vou ficar de atalaia, meu digno. Se você não divulgar o que eu lhe disse, virei pressioná-lo onde quer que você esteja. Tomarei o seu silêncio como um agravo ao meu saudoso bisavô.
Ter o fantasma pairando sobre a minha cabeça seria perder a tranquilidade para sempre. Preferi ceder. Mastigando meu décimo biscoito de polvilho, propus divulgar no site Tertúlia ponto capixaba a notícia que ele me dera. O fantasma aceitou a sugestão, depois que lhe expliquei o que era um site.
- Mas divulgue logo. E não abuse tanto dos biscoitos de polvilho, meu digno. Lembre-se do que aconteceu a D. Pedro com o chucrute e o salsichão... – disse-me antes de sumir da minha vista, enquanto Gabriel falava.