A crônica do contra

Quando terminei de escrever ela me disse: – Não quero ser publicada!

É o quanto basta para que uma introdução seja feita como início do início.  

Os que pensam que é maluquice de cronista ouvir a voz do que escreve enganam-se. Desde que se começa a escrever estabelece-se entre o autor e o seu escrito um diálogo silencioso e íntimo que prossegue ao longo do texto à medida que este evolui. É uma conversa franca, uma troca fértil de ideias, e o bom é que corra de forma harmoniosa, sem rusgas, sem divergências, sem animosidades entre quem escreve e o que é escrito, numa empatia de amigos.

Se coubesse entrar aqui um bigode doutoral com ares de gato mestre, como dizia meu pai, seria para proclamar, alto e bom som, que o processo de criação textual pede entendimento e não antagonismos entre o sujeito e o objeto envolvidos. 

Mas nem sempre é assim, pelo menos comigo.

Muitas vezes – oh, quantas vezes! – a empatia que devia haver entre mim e a crônica que estou escrevendo degringola em adversidade, eu querendo ir para um lado, o texto, para outro, quando não empaca sem sair do lugar nem empurrado à força. O que me leva a perguntar se não é vinagre do ofício.

Foi o que aconteceu com esta crônica quando botou de fora as unhas da sua malevolência. Uma crônica que se anunciava insatisfeita, cheia de má vontade para com o cronista, fazendo corpo mole – ou corpo duro mesmo, quase bancando uma vaca a caminho do brejo. 

Eis porque resolvi dialogar com ela para demovê-la da sua idiossincrasia. Em outras palavras: resolvi dar-lhe ouvidos.

- Por que você não quer ser publicada, amiguinha? (notem o tratamento conciliatório com que quis amaciá-la).  

- A resposta é simples – disse ela. – Porque a crônica não está digna de mim mesma.

- Por que não?

- Basta reler alguns trechos que você escreveu. Pegue uma caneta lumicolor (foi ela que usou esta expressão), da cor que você quiser – mas eu prefiro vermelha – e marque aí em cima as seguintes expressões, de extremo mau gosto: início do início; bigode doutoral com ares de gato mestre; o sujeito e o objeto envolvidos; vinagre do ofício. E o que você me diz das unhas da sua malevolência e vaca a caminho do brejo? Eu, vaca a caminho do brejo?! De onde você, meu caro cronista, foi tirar essas tolices, que me fazem corar de vergonha? E ainda vem falar de empatia pra cima de mim? Para coroar esse rosário de excrescências você culminou com o demovê-la da sua idiossincrasia!  Escrever idiossincrasia numa crônica! Reconheça que é querer demais que eu aceite ser publicada, mansa e pacificamente, com todos esses caroços e sem qualquer protesto. Nem adianta me chamar de amiguinha.

- Você não acha que está sendo muito radical? – perguntei querendo conquistar sua benevolência.

Estou zelando pelo nosso nível de qualidade. Esmero no linguajar, do qual não abro mão!

Posta a coisa nestes termos tive de me submeter às críticas que a crônica me fazia. E como ela estava deliberada a não me conceder o nada obsta à sua publicação, fizemos um acordo: eu incluiria no texto as críticas que ela fez e a permissão para a publicação seria dada.

- Mas com uma condição – disse ela.

- Qual?

- Que nas próximas crônicas você seja mais apurado no uso da linguagem.

- Ok, amiguinha.  

- Então pode mandar brasa – disse ela.

- Mandar brasa? – estranhei a vulgaridade.

- Quer dizer: pode me publicar in totum.

 

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