As meninas dos olhos

Entrou Arquimedes pela minha sala adentro com a exagerada saudação que sempre me atirava aos peitos: - Salve, aclamado cultor da literatura capixaba! 

Como se vê, nada era capaz de reprimir a expansiva exuberância de Arquimedes. Submeti-me, pois, à sua entusiasmada abordagem à espera de que me dissesse a que viera. Mas sabia que teria de aguardar que ele borboleteasse por uma série de outros assuntos antes de cuidar do objetivo principal da sua vinda. 

Mas vamos ao visitante.

Arquimedes sentou-se à minha frente e com dedos meticulosos ergueu as paletas escuras que cobriam as lentes dos seus óculos deixando-as apontadas na minha direção como duas setas prontas para um disparo. E como em Arquimedes tudo, absolutamente tudo, exige uma explicação pormenorizada da sua parte, mesmo que não lhe seja pedida, foi logo explicando: – Não é pedantismo não (referia-se às paletas sobre as lentes). É prescrição médica.

Devo ter feito cara de quem continuava na mesma e Arquimedes prontamente socorreu-me:

– Ando com as meninas dos olhos inflamadas, veja você. As minhas meninas dos olhos, já pensou? E parecem que são meninas mesmo porque todos os meses infeccionam e sangram, como se tivessem regras – e riu das suas meninas que menstruavam mensalmente.

– Isso quer dizer que as meninas já são mocinhas?  

– Meninas-moças... – deliciou-se Arquimedes com a oportunidade que eu lhe dava. Assim falando tirou de sobre os óculos as paletas escuras e guardou-as num estojo de bolso que me entregou, dizendo:

– Mandei vir este protetor de olhos da Suíça. Meu irmão é diplomata e me enviou de lá. Você sabe o que é ser irmão de diplomata? É se sentir um cidadão globalizado! Qualquer coisa que eu preciso, eu peço a ele e ele me manda. Lá na Suíça o protetor é baratíssimo, compra-se em supermercado. Aqui no Brasil custa caro e eu não o compraria sem receita médica. Não que não fosse vendido sem receita. Mas eu é que não ia comprar um protetor solar para óculos de grau que não fosse recomendado pelo meu oculista. Sei lá se seria um produto falsificado no Paraguai, já pensou? Veja aí no estojinho... – e tornou a pegar o estojo que me havia passado. – Olha, está escrito em francês e alemão o fim a que se destina. Segurança na informação, respeito ao consumidor! Em alemão não dá para eu ler. Alemão é uma língua complicada, eles juntam duas ou três palavras numa só, formando um palavrão. Ainda botam o verbo no final. Mas em francês eu consigo pescar alguma coisinha, embora pelo alto. Você sabe francês?

– Dá para pescar alguma coisinha pelo alto...

– Então você é como eu... Na Suíça nós seríamos olhados com indiferença. Nós estaríamos na categoria do meio, daquelas pessoas que falam ou entendem francês. Lá todo mundo tem que falar pelo menos duas línguas. Ser bilíngue, não é como se diz? O preconceito se faz pelas línguas que as pessoas falam, já pensou? O alemão é o idioma mais prestigiado pela turma que mora no norte do país, em Zurique, por exemplo, região nobre onde meu irmão está. Depois, vêm os que falam francês, os meios-termos na escala social. Os que falam italiano no sul da Suíça são considerados gentinha, olhados de cima para baixo pelos outros. Mas gentinha é modo de dizer porque eu estou falando do padrão de tratamento que existe na Suíça, veja bem! Ou seja, num país do primeiro mundo! Mundo civilizado, metódico, da pontualidade absoluta, mas frio, sem calor humano. É o meu irmão que diz.

– Diz por e-mail ou pessoalmente? – encaixei a pergunta.

– Pessoalmente, quando vem ao Brasil... – E prosseguiu em sua história: – Se você cair na rua aqui no Brasil, forma logo um bando de gente ao seu redor que quer prestar socorro. Pode ser médico, pode não ser, pode ser paramédico como hoje em dia se chamam os enfermeiros de antigamente, e podem ser apenas curiosos que, aliás, geralmente são maioria. Lá na Suíça, não. O cara pega o celular, liga para o serviço de assistência médica, diz que tem um sujeito caído na via pública, e vai em frente. Não se forma rodinha em torno do pobre coitado. Parece até que a preocupação do informante é a de deixar a rua desobstruída, já pensou? Prisão...? Se você for preso por um delito menor, eles perguntam: ‘você quer cela com televisão? quer usar celular? quer ar-refrigerado?’ Você tem direito a essas comodidades, mas tem de pagar, já pensou? No final do mês vem a conta e você tem que ter condição de entrar com o tutu para manter seu conforto prisional, não é esta a palavra que se usa agora no Brasil? 

Antes que eu respondesse, ele continuou: Estas paletas para usar sobre as lentes dos óculos (ele continuava com o estojinho na mão) são uma invenção genial. São uma invenção ou é uma invenção?  Não importa... Elas funcionam como um redutor de luminosidade solar. Simplérrimas de serem adaptadas aos óculos. Eu não sei o que você pensa de determinadas invenções sem as quais a nossa vida seria um transtorno... Não estou falando da internet, do avião, do telefone, do computador, do ultrassom... Falo de utilidades corriqueiras. Veja o caso da privada... A sua invenção foi um avanço fantástico para a humanidade... Antes dela, lembra-se como era? Não estou querendo dizer que você seja daquele tempo, mas todos nós sabemos como era... Você concorda comigo?

Desta vez não deixei passar a brecha sem indagar de Arquimedes:

– Você tem toda razão, mas o que o traz aqui, meu amigo?

– Boa pergunta, boa pergunta... Se você não pergunta, eu vou falando, falando... Mas vim procurar você porque preciso da sua ajuda. Estou redigindo um protesto contra a tirania burocratizante dos ambientalistas que hoje em dia atravancam o progresso das cidades (Arquimedes é um empreendedor imobiliário) e gostaria que você desse uma lidinha para corrigir os erros de português. Vai ser um abaixo-assinado em que vou pegar as assinaturas de vários empresários contra o absurdo das exigências que hoje se fazem para se aprovar nas prefeituras um simples projeto de loteamento. Projetos muitas vezes destinados às camadas sociais mais carentes e que deveriam ter tramitação rápida... No entanto, emperram nas garras dos ecologistas de plantão. Quando eu leio as exigências que eles têm a coragem de fazer as meninas dos meus olhos sangram mesmo, mas de raiva. Corrija o meu abaixo assinado com o seu olho de mestre...

– Mestre nada, Arquimedes, eu não passo de um escriba... Um escriba que muitas vezes escorrega nos esses e erres e esbarra nos hifens...

- Hifens, hifens... deviam ter acabado com eles como acabaram com o trema. Perderam a oportunidade! Mas se você se considera um escriba digo que é um escriba que deveria estar na Academia Brasileira de Letras, é o que eu acho!  Se bem que até o Sarney está lá...

– E o Paulo Coelho...

– Esse é pior ainda...

– Mas como estou vendo que você está ocupado então, se me permitir, vou deixar meu catatau em suas mãos e passo outra hora para pegar, pode ser?

– Claro que pode... Ou melhor, deixa que eu telefono para você assim que fizer a leitura.

Ele agradeceu, recolocou as paletas sobre as lentes dos óculos, guardou na capanga de alça o estojo vazio, e antes de sair ainda perguntou: - A propósito, catatau é com l ou com u?

 

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