Novamente o fantasma me aborda

Não contei antes, conto agora.

Era uma segunda-feira chuvosa e ia eu pelo centro da cidade de guarda-chuva armado. Talvez por causa disso não vi o fantasma se aproximar. Quando dei por ele, já tinha se alojado sob o teto do meu guarda-chuva, passando-me sobre os ombros seu braço sepulcral.

– Vocês, hein!?  Nunca pensei que fossem se esquecer! – disse ele sem perder tempo com a miudeza de um bom-dia.

– Esquecer de quê, fantasma?

– De quê? Ainda pergunta? Que dia é hoje, meu digno?

– 28 de janeiro – disse eu.

– Mas de que ano? Diga o ano... Tenha a coragem de dizer o ano!

– Ano 2010 da graça do Nosso Senhor Jesus Cristo...

– Então?

– Então o quê?

– Não disse que vocês tinham se esquecido? Hoje faz cento e cinquenta anos, ouça bem, meu digno, CENTO E CINQUENTA ANOS que sua majestade o imperador D. Pedro II esteve no Espírito Santo e visitou o convento da Penha. No entanto, ninguém lembrou desse acontecimento histórico. Nada saiu na imprensa, nenhuma comemoração foi feita, você não disse nada!  E pensar que meu bisavô fez parte da comitiva que subiu até o santuário acompanhando D. Pedro. Subiram pela velha ladeira de pedras escorregadias. A imperatriz também estava com eles, Dona Teresa Cristina. Só que foi de cadeirinha, carregada pelos escravos. E a volta? Debaixo de um aguaceiro muito mais forte do que este que seu guarda-chuva mal impede que nos molhe, o que pode até me constipar. Você sabe disso tudo, tenho certeza, e ficou caladinho da silva.

– E por que eu tinha de dizer alguma coisa?

– Você não é metido a historiador? Tinha que ter falado, sim. Tinha que ter escrito um artigo nem que fosse uma noticiazinha para sair no boletim de algum instituto histórico. Entretanto, mergulhou num silêncio imperdoável!

As invectivas do fantasma me deixaram, em princípio, com sentimento de culpa, o que, aliás, sempre acontecia quando ele me abordava. Razões não lhe faltavam para a crítica. Só que não era justo que atribuísse a mim, apenas a mim, e em plena via pública, numa manhã chuvosa de vento irrequieto, a responsabilidade pelo que chamara de silêncio imperdoável.

– E os outros, por que você não cobra também dos outros o que está cobrando a mim? – perguntei irritado. – Não posso carregar nos ombros os pecados do mundo – exagerei em legítima defesa.

– Dos outros eu não sou amigo – foi sua resposta fulminante. – E praticamente não os vejo. Já você, eu o encontro a toda hora no centro da cidade...

Como um segundo fantasma, pensei que ele fosse me gozar. Mas seu senso de humor não ia a tanto.

– Obrigado pela deferência (eu devia ter dito preferência). Estou longe, porém, de ser o tal historiador que você acha que sou. A prova é que não sabia que o seu respeitável bisavô tinha subido ao convento com o imperador...

Ele percebeu minha tentativa de fuga e cortou-me a saída:

– Um mero detalhe, meu digno, que não faz história. Eu propugno pela história que merece ser conhecida e divulgada, tal e qual a observação que o imperador fez do Canal da Costa, que ele contemplou do alto do convento, lembra-se dela? D. Pedro II escreveu no seu caderninho de viagem: “Rio da Costa, que entulha de areia o porto, entre a Penha e o Moreno”. É disso que estou falando. De informações importantes. Esta que relembrei tem até certo sentido ecológico. A propósito, este foi o rio que inspirou o padre Antunes de Siqueira a versos magistrais...

– Não me diga que você vai recitá-los aqui na rua? – interrompi o fantasma para evitar que ele detonasse a declamação.

– Claro que vou, meu digno.

E se pôs a recitar em voz cantada, chamando a atenção dos transeuntes que, por não verem o fantasma, supunham que era eu um declamador maluco:

Da Costa estreito rio serpeando
Beija os campos, que também inunda;
Quando marés e chuvas vão inchando
Há muito peixe, o marisco abunda...

Antes, porém, que ele me despejasse nos ouvidos a poesia do padre por inteiro a chuva foi inchando sobre nós e um vento forte retorceu meu guarda-chuva de tal forma que nos relegou ao desabrigo. O fantasma assustou-se com o incidente e bateu em retirada (estaria fugindo a um constipado?), despedindo-se com uma frase que me soou como uma ameaça:

– Apareço outro dia, meu digno.

 

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