Não era, como escreveu Guy de Maupassant, "no fim de um jantar de homens, na hora dos intermináveis charutos e dos incessantes cálices, na embriaguez e no cálido torpor das digestões, uma ligeira desordem das cabeças após tantas carnes e licores ingeridos e misturados."
Mas se não tinha sido um jantar, fora um almoço. E se de carnes não se provara, porque se tratou de uma suprema moqueca de badejo, deixara também nos comensais que a degustaram, com a tepidez de um vinho chileno, uma letargia digestiva, uma moleza de conversas e casos contados sem pressa após o cafezinho, ainda que naturalmente sem charutos.
Falávamos principalmente de acontecimentos estranhos, experiências vividas pelos presentes, que beiravam o fantástico e o inexplicável. Todos apresentaram suas narrativas marcadas por um quê de estranheza e mistério, se bem que às vezes derramando-se para um desculpável clima fantasioso. Por culpa do vinho, há que se dizer.
Quando me tocou a vez de falar, lembrei-me do caso do apartamento do Dr. Abdala. Relatei-o sem me preocupar em que categoria de espanto poderia ser ele enquadrado pelos meus companheiros de mesa. E o que disse foi o seguinte:
Num belo e outonal domingo de maio, fui visitar o Dr. Abdala, que fazia 89 anos. Fui, na verdade, levado por um amigo comum. Não era minha intenção fazer tal visita mas o meu amigo me persuadiu com um argumento irrebatível: "Talvez o nosso bom e querido médico Dr. Abdala não chegue aos 90. Já foi longe demais."
Dirigimo-nos, pois, ao apartamento 601, do Edifício Golden Park, um pouco antes da hora do almoço, o que por mim era considerado de extrema inconveniência. Não sabia então que um dos propósitos do meu amigo era o de filar a boia do médico. Vim a descobrir depois.
Na portaria do prédio, para que o nosso acesso fosse permitido, tivemos de apresentar documento de identidade. "Questão de segurança", justificou o porteiro.
Subimos de elevador e, após dois toques de campainha, a porta do apartamento nos foi aberta por um jovem de chinelos e em mangas de camisa, demonstrando, pela informalidade dos trajes, que se tratava de algum familiar do médico.
Deu-nos recepção afável: "Queiram entrar e fiquem à vontade. Tio Abdala está acabando de tomar banho."
Fomos então introduzidos pelo nosso recepcionista numa sala bastante confortável, onde várias cadeiras postas em roda aguardavam para ser ocupadas. Éramos os primeiros a chegar, logo nós que não tínhamos sido convidados!
Aos poucos outras pessoas foram entrando e se sentando nos lugares disponíveis, homens, todos eles. Não havia dúvida de que faziam parte da larga parentela sírio-libanesa do Dr. Abdala, ali reunida para um programado e comemorativo almoço machista de família.
Apesar do constrangimento que me dominava, e que a olhos óbvios deveria saltar aos olhos dos integrantes da roda, aos quais não conhecia, não havia da parte deles, em relação a mim e ao meu amigo, nenhuma perceptível demonstração de contrariedade quanto a nossa presença entre eles. Talvez porque pensassem que tivéssemos sido convidados pelo anfitrião, sobretudo porque o meu amigo, em mais de uma oportunidade, com despudor e caradurismo, deu a entender essa possibilidade, o que me envergonhava tremendamente.
Estavam as coisas neste pé quando fui tomado por um desejo irreprimível de ir ao banheiro para atender aos reclamos de uma bexiga pródiga e incontinente.
"O banheiro social fica perto da sala de almoço", orientou-me o jovem que nos havia recebido e a quem recorri na aflição em que me deparava. Pedi licença e fui em busca do toalete.
Tive de atravessar uma sala ampla e luxuosa, onde uma mesa principesca estava sendo minuciosamente preparada por uma simpática copeira, com um aventalzinho azul rendado e um gorro branco na cabeça. Ao todo contei 17 cadeiras, o mesmo número que havia na sala de onde eu vinha, certamente nenhuma delas destinada a mim ou ao meu intrometido amigo, filão de boia.
"Espero que o sem-vergonha tenha o bom senso de não entrar nesta sala como se fosse um dos convivas, arrastando-me consigo", pensei com os meus botões. E com tais pensamentos e receios rondando-me a mente desabotoei-me das minhas urgências no toalete e voltei à sala de onde há pouco saíra.
Quando lá cheguei, e somente depois de me sentar na cadeira que havia deixado para ir ao banheiro, tive a surpresa de ver que aquela não era a sala de onde eu saíra minutos antes. O grupo de senhores que ali estava também era outro. Vestiam-se solenemente com smokings e me encaravam espantados diante da sem-cerimônia com que eu me instalara no meio deles.
É fácil imaginar o desconcerto de que fui tomado. Levantei-me prontamente do assento em que me aboletara e com um sorriso amarelo ensaiei uma retirada de rabo entre as pernas, assim justificada: "Queiram me desculpar. Errei de sala".
Antes, porém, que conseguisse me livrar do vexame em que me metera, um dos integrantes do grupo, com a autoridade de quem falava em nome dos demais, ou talvez com a prerrogativa de ser quem ali podia me pedir satisfação, inquiriu-me asperamente: "A que sala o senhor está se referindo?"
"À sala em que eu estava com os parentes do Dr. Abdala e com o meu amigo...", tentei explicar sem conseguir terminar a frase, sumariamente interrompida pela mesma voz autoritária:
"Aqui não existe Dr. Abdala nenhum. Este apartamento é meu e, ao que eu sei, meu nome é Josué, e nunca vi o senhor na minha vida!" - o que provocou a hilaridade geral da turma do smoking.
A primeira ideia que me ocorreu foi a de que eu estivesse sendo vítima de uma brincadeira de mau gosto, uma trama urdida para me confundir enquanto fui ao toalete. Mas o absurdo da ideia e os lances que se seguiram me conscientizaram de que estava vivendo realmente um pesadelo."Se eu fosse você, Josué, chamava logo a polícia... Um tipo como este, que consegue entrar no seu apartamento burlando a vigilância do porteiro, só pode ser um malfeitor... Ou, no mínimo, olheiro de bandido", disse um dos presentes.
"Não é nada disso, meus senhores!", retruquei descoroçoado. "Está havendo um lamentável engano. Eu tive até de me identificar, na portaria do prédio, para chegar aqui com o meu amigo..."
"Que amigo é esse a que o senhor tanto se refere?", reagiu quem se dizia dono do apartamento. "Está ele aqui entre nós? Está aí ao seu lado? Está debaixo da minha cadeira? Mostre-nos onde ele se encontra!"
Foi neste momento que, felizmente para mim, depois de ouvirmos duas batidinhas delicadas na porta, a copeirinha do avental azul rendado enfiou na sala a cabeça com o seu gorro branco para anunciar que o almoço seria servido dentro de um minuto. E vendo-me de pé, escorando-me apatetado no espaldar da cadeira, disse-me, repreensiva:
"Ainda bem que achei você a tempo. Saia daí para botar o colete e a gravatinha de garçom para servir o almoço!"
A intervenção da copeirinha provocou uma segunda rodada de gargalhadas que reverberaram no recinto, desanuviando o ambiente. "Então o maluco que veio até aqui é o garçom do rega-bofe! Esta é muito boa!", ainda ouvi alguém dizer às minhas costas, enquanto eu escapulia em passos cegos.
Do lado de fora, de mãos postas nos quadris, a copeirinha que antes me parecera tão simpática, invectivou-me duramente: "Você ficou doido, cara, se metendo onde não é chamado? Vai se aprontar para servir os convidados!"
Aproveitei a ordem, entrei pela porta da cozinha, saí pela de serviço do apartamento, chamei com dedos urgentes o elevador e dei comigo na portaria do prédio implorando transtornado ao porteiro: "Me diga, por favor, quem é o proprietário do 601."
"É o Dr. Abdala", respondeu-me o interrogado como se estivesse diante de um lunático. "Não é de lá que o senhor está vindo?"
"Estou vindo e vou voltar..." - disse-lhe decidido, sem que o pobre homem entendesse patavina do que estava se passando.
E pegando o elevador que parecia ter ficado à minha espera, voltei ao meu ponto de partida onde apertei com firmeza a campainha do apartamento disposto a tirar a limpo o estranho caso que me havia sucedido.
Quando a porta se abriu, dei de cara com a copeirinha de avental azul rendado e gorro na cabeça, que me perguntou, num sorriso radioso: "Aonde o senhor se meteu? O Dr. Abdala o procurou pelo apartamento todo. Ainda bem que o almoço mal começou e tem uma cadeira à sua espera".
Não preciso dizer que a recepção que me prestou o Dr. Abdala, quando entrei na sala, foi das mais calorosas. Parecia até que o aniversariante era eu e não ele. Além de tudo, fez questão de que eu me sentasse ao seu lado, na cabeceira da mesa. Mais afastado de mim, o amigo que me levara ao apartamento mostrou-me o polegar erguido em sinal de aprovação, enquanto mastigava com prazer uma fornida garfada de tabule.
Ao terminar de contar a minha história, meus companheiros de moqueca de badejo se concederam um precioso silêncio de reflexão. Finalmente um deles, antecipando-se aos outros, disse: "Depois dessa, só nos resta pedir a conta..."
"De preferência, acompanhada de charutos", completei, lembrando-me do magistral Guy de Maupassant.