Cri que vozes em coro chamaram meu nome.
Poderia ter escrito acreditei, ou supus, ou julguei... Mas cri me pareceu mais provocativo – cri primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo crer, era assim que se dizia – para iniciar esta crônica que se quer provocativa e estranha. Que se quer porque a quero eu e também a crônica que, no seu caso particular, aceita ser estranha e provocativa.
Mantenha-se o cri.
Estava eu parado na praça Costa Pereira, em frente ao velho edifício Antenor Guimarães que com seis andares já foi o mais alto de Vitória (lembram-se disso?) quando as vozes me chegaram de chofre. E não havia dúvida de que chamavam meu nome.
Olhei para os lados, olhei para trás, olhei para o alto do ex-mais alto edifício da cidade e não vi ninguém que me estivesse a chamar. Um mundo estranho parecia me envolver, com vozes que estranhamente chamavam meu nome, vindas aparentemente de lugar nenhum, mas denotando satisfação. Como tenho a mania de ouvir vozes fiquei na minha, disfarçando a parcela de inofensiva esquizofrenia que às vezes me acomete.
As vozes, porém, insistiram. E foi devido a sua insistência que pude descobrir que elas vinham dos paralelepípedos da rua que a prefeitura está descascando do asfalto que a cobriu durante anos, para dar à cidade um toque de... historicidade.
Não só descobri de onde vinha o chamado como também o motivo por que era chamado: depois de décadas sufocados sob a camada de negrume grosso que os ocultara da luz do céu e do sol, os paralelepípedos se sentiam felizes por verem alguém conhecido (ainda vivo) com quem pudessem bater um papo ligeiro. Assim, nada mais justo que chamassem pelo nome, e até com certa ansiedade, o vivente sobrevivente, seu contemporâneo de outros tempos, que era eu.
Pelo menos foi no que cri. Assim crendo, dei fio à conversa.
- Como vocês se sentem agora botando as caras de fora? – perguntei.
- Felizes da vida! – responderam em coro. – Sentimos que enfim surgiu na prefeitura alguém de fino sentimento histórico que entendeu a importância de nos valorizar, nós os velhos e sumidos paralelepípedos da cidade. Olhe para a rua toda.
Olhei para a rua toda. Uma multidão de paralelepípedos cercava a praça Costa Pereira e ainda se enfiava intrometidamente pelas ruas vizinhas.
- É um momento de glória para vocês? – perguntei.
- Glória gloriosa! – responderam todos numa mesma voz paralelepipídica.
- Mas é uma pena... – disse um dos paralelepípedos mais próximos de mim.
Pena...?
- Pena que não tenham reconstruído o teatro Melpômene e recriado o largo da Conceição...
- E retornado com os bondes... – disse outro paralelepípedo endossando a tese do companheiro.
- Ou pelo menos que repusessem seus trilhos – acrescentei eu solidário com o saudosismo que nos embalava.
- Seria uma boa! – aquiesceram em coro os meus amigos d’antanho.
- Mas resta um consolo... – disse-lhes eu.
- Qual?
- Ainda temos aqui o teatro Carlos Gomes e o Glória ali na frente, que está sendo reformado.
- E o nosso Antenor Guimarães – lembrou outro paralelepípedo corrigindo um lapso que seria imperdoável.
- Eu sinto falta do Banco Hypothecário e Agrícola do Estado de Minas Gerais, do Café Avenida e da Casa Madame Prado – choramingou um quinto amiguinho, mais sentimentaloide.
- Mas tem as palmeiras imperiais... – observou outro.
Concordei com ele, com uma ressalva: O perigo é descascarem os paralelepípedos e cortarem as palmeiras... Nunca se sabe do que são capazes os ambientalistas...
- Isso jamais! – gritaram em coro meus interlocutores. – Não o admitiremos nunca. Os paralelepípedos unidos jamais serão vencidos!
Não estavam apenas felizes, os pedregulhos. Estavam também determinados a garantir para Vitória a vitória que em boa hora haviam conquistado na preservação da historicidade da cidade.
Com esta sensação de empedernida decisão que me passaram me despedi deles. O futuro histórico de Vitória, se é que se pode falar assim, estava bem entregue. Pelo menos foi no que cri.