Fim de caso

No magnífico romance The end of the affair, do escritor inglês Graham Greene, traduzido para o português com o título de O fim do caso, um adultério é interrompido sob o estrondo de uma bomba lançada sobre Londres, durante um ataque alemão na segunda guerra mundial. Nesse fim de aventura entre os amantes – da ventura que se despedaça sob os escombros do bombardeio – está o começo do romance, a trama crescendo com o sofrimento moral de uma relação amorosa que se desfaz diante do cumprimento de uma promessa feita num momento de desespero em que a amante julga que o seu parceiro havia morrido.

No caso desta crônica não se vai a tanto, pobre de mim para me arvorar a tão altas cavalariças. Que me baste apenas o título tirado a Graham Greene.

Assim, prolegômenos à parte, vamos ao caso.

Foi no desjejum matinal que a mulher dirigiu-se ao marido, quando ele pegou o jornal para lê-lo enquanto tomava o seu café com leite e torradas:

— Você deixou de reclamar da geladeira nova... o que que houve?

— Não houve nada, por quê?

— Porque você costumava dizer que ela estava cheia de novidades, ora resmungando, ora tossindo, até espirrando... De repente, cessou de falar no assunto. Estou estranhando o seu silêncio...

— Não tem nada para estranhar – respondeu ele voltando a se concentrar (fingidamente) na mal iniciada leitura do jornal, embora por dentro da mente pensasse: será que ela sabe de alguma coisa ou sua estranheza é apenas normal?

A mulher deu um tempo, ergueu o bule de café, despejou o próprio na xícara, pôs duas colherinhas de açúcar e o mexeu e remexeu lentamente sem tirar os olhos do marido com a cara enfiada no jornal.

— Você viu quem morreu? — perguntou ele.

— Quem? — indagou a esposa sem muito interesse.

— Dr. Hildebrando Silva. Era amigo de seu pai.

— Quando eu era menina... – disse ela dando a entender que a morte do médico não entrava na pauta da conversa. Depois, deixou passar mais um tempo, como se a resposta dada pusesse o marido a salvo do interrogatório que ele quis evitar com a notícia do óbito.

— Você continua se levantando toda noite para tomar o seu copo de leite gelado? – atacou ela de novo.

A pergunta se explica porque os dois dormiam em quartos separados.

— Continuo... – disse ele escudado no jornal. Mas por dentro da mente a dúvida o assaltou outra vez: aonde é que ela quer chegar? Será que desconfia dos meus encontros noturnos e platônicos com a nova geladeira e quer me testar?

A mulher mastigou um biscoito maisena, tomou um gole de café e voltou a comentar:

— É bem esquisito...

Ele decidiu enfrentá-la:

— O que que é esquisito?

— Eu já disse. Seu silêncio repentino sobre a geladeira. Antes ela o aborrecia como se eu tivesse introduzido um trambolho em nosso lar, ao pôr uma geladeira nova no lugar da velha contra a sua vontade. De uns tempos pra cá, você trancou a matraca, não dá mais um pio sobre o assunto. Você não é disso...

— O que você quer dizer?

— O que eu disse... que conheço você o suficiente para saber que quando implica com uma coisa não para de reclamar dela. Mas sobre a geladeira você não faz mais comentário nenhum. Para mim é muito esquisito o seu comportamento.

— Uma hora é estranho, outra, esquisito...  Não vai me dizer que você está com ciúmes da geladeira? – soltou ele a pergunta que logo viu ser a pergunta errada.

— Ciúme...? Por que ciúmes? – perquiriu a mulher.

— Sei lá! Esta nossa conversa está sem pé nem cabeça, como, aliás, têm andado as coisas aqui em casa ultimamente. Eu me acostumei com as extravagâncias da geladeira e pronto — deixei as suas manias de lado! Ela que resmungue, que tussa, que trepide, que chore, que faça o que bem entender, é problema dela. Eu não estou nem aí para o que se passa com a geladeira! Nem aí, entendeu? Decidi não lhe dar mais atenção. Estou certo ou estou errado?

A mulher não respondeu logo, mas respondeu:

— Está certo. É a melhor coisa que você tem a fazer.

Da cozinha, ao lado da copa onde o marido e a mulher tomavam café, veio um estouro forte. Os dois correram para ver o que era. Uma fumaceira branca se espalhava no ar, cheirando a queimado. A geladeira havia pifado.

Com ar idiotizado a mulher perguntou:

— O que vamos fazer agora?

— Me deixe sozinho — disse ele.

 

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