Eu ia caminhando sobre as ondas do mar e meditando sobre a irrealidade daquele caminho líquido. O mar estava ali, sob meus passos, insondável oceano, consistente em suas moléculas aquosas saturadas de sal, e eu meditava sobre o absurdo daquela irrealidade.
Gaivotas cruzavam sobre a minha cabeça e, às vezes, mergulhavam de ponta na captura de peixes que levavam pelos ares nos bicos molhados.
Eu tinha acabado de acordar, saboreava um desjejum sóbrio e, como não tinha nada a fazer naquela manhã cheia de promessas, entrei como Cristo pelo mar adentro. Foi uma invasão abusada, porém discreta, que não chamou a atenção das poucas e distraídas pessoas que perambulavam na praia, naquela precoce hora matinal. Além do mais, estou naquela idade em que aprendi que mesmo estranhos fados e façanhas extraordinárias não devem ter o brilho do espalhafato. Ao contrário, devem ser curtidas sem alarmes, em recolhimento, no regalo individual de quem sorve, com ternura suave, o corpo da mulher amada.
Esta despreocupação e modéstia com que pisei as águas do mar, e comecei a palmilhá-las, não impediam, todavia, que me apercebesse do absurdo da cena.
Não posso dizer que estivesse vestido a caráter: ao invés de calção de banho, trajava jeans e blusa esporte aberta no peito, o que deixava expostos os ralos pelos brancos do meu tórax emagrecido. Nos pés, portava sandálias de couro e, ao reparar nelas, me sobreveio a imagem do Cristo numa ilação com as sandálias do pescador. Mas este foi um pensamento fugaz como as ondas que morriam mansamente na praia depois de passarem, ondulantes, sobre meus passos. Porque, ao contrário do Cristo, eu caminhava sobre as ondas descompromissadamente, sem demonstrações evangélicas, indiferente à sorte e ao destino dos homens, alheio à pregação de um novo Advento. Vivia um momento perfeito de inigualável abandono pessoal, despregado de raízes terrenas e elucubrações escolásticas. Eu era apenas aquele que caminhava sobre as águas do mar naquela manhã que despontava maviosa. Não fazia planos, nem alimentava esperanças. O que não me impedia de ter intuições, uma das quais foi a de que calharia àquele passeio marítimo e indelével, como primoroso pano de fundo, uma sonata bachiana. Mas uma segunda intuição neutralizou a primeira e me fez estremecer ao vento que coçava minhas barbas despertando em mim o receio de que, ao som de Bach, eu pudesse me desprender do mar e alçar aos céus em voo alado. E, para desprendimento tão completo ainda não me sentia suficientemente preparado. Assim, evitando novos devaneios, prossegui marujo-andante paralelamente à praia.
Uma voz de criança alcançou-me: “Mãe, olha o homem andando no mar!”
Não me dignei a ver a reação da mulher à espantosa descoberta do filho. Seria um assombro secundário demais para o meu momento de encantamento marítimo-peripatético.
Descobri então que no ponto mais profundo do alheamento depara-se uma grande alegria. Eu era apontado por uma criança estupefata como uma estranha criatura caminhando sobre a superfície do oceano e, no entanto, fazia ouvidos moucos ignorando o tremendo efeito da desconcertante descoberta infantil. Fechava-me, pois, no estreito e privadíssimo espaço que eu extraía da alegria que meu alheamento consciente me proporcionava. Era uma atitude egoísta, sem dúvida. Mas por que haveria de romper a redoma de cristal daquele momento tão especial para aceitar me exibir como uma lady Godiva diante dos olhares de outras pessoas que, certamente, em pouco tempo, seriam multidão a me observar e a me apontar? Nada devendo a ninguém, nada tinha a partilhar com outras pessoas. Cada qual que, a seu tempo, vivesse também uma perambulante aventura marítima, como eu vivia a minha. E vendo o sorriso conivente dos peixes no fundo do mar reconheci que estava certo. Porque eu era aquele que caminhava sobre o mar, com alegria incomunicável, naquela manhã absurda. [Fim do texto datilografado. Segue um final, posto a lápis]. Um nauta marítimo, sem mágoas, sem ilusões, sem vaidades, transeunte das águas, senhor de mim, viandante das vagas, vagamundano marítimo. Dei graças aos céus de estar ali, e continuei a minha caminhada líquida pisando a superfície marinha com passos afetuosos e seguros.
(*) Texto encontrado entre os meus perdidos, datilografado em duas páginas, sem indicativo de data. Quando o teria escrito? E para quê?