O fantasma e a cura da dor de garganta

Na minha juventude – já rolaram decênios de lá até agora – recorria-se à expressão baita como sinônimo de grande. Pois baita é a palavra para designar a dor de garganta que me atormentava quando me apareceu o fantasma do centro histórico de Vitória para agravar minha indisposição. Ao cumprimento que me dirigiu respondi com afônica dificuldade.

“Dor de garganta, meu digno?”, indagou adivinhão.

Balancei a cabeça confirmando.  

“É um mal que aborrece, mas tem cura. Basta fazer gargarejos com chá morno de casca de romã três vezes ao dia. Se houver catarro e tosse, inclua uma folhinha de anis. É um santo remédio. Você sabe fazer gargarejo?”

Respondi com outro movimento afirmativo de cabeça quando minha vontade, se não estivesse afônico, era perguntar: “E tem quem não saiba fazer?” 

“Eu perguntei porque não é todo mundo que gargareja corretamente”, disse o fantasma. “Fazer gargarejo é uma arte, eis o âmago da questão. Meu bisavô que o diga. Ele ensinou a meu pai como se faz o gargarejo perfeito e meu pai me ensinou, criando-se uma tradição de família. Mostra como você gargareja, meu digno, para eu ver se é a forma certa.” 

Submisso, estiquei o queixo para o alto e reproduzi a posição de um gargarejo com a boca aberta para o fantasma ter ideia do meu jeito de gargarejar, igual ao de toda gente.

“C’est incorrect!”, bradou pegando-me desprevenido.   

“Incorreto, por quê?”, forcei a pergunta com minha afonia espremida.  

 “Você ergueu demais o queixo. Nessa posição, faz uma zoeira ridícula, o chá não limpa o oco da garganta e corre o risco de entrar goela adentro provocando engasgos desconfortáveis e ainda parece um peru grugulejando. O gargarejo correto é com a cabeça inclinada só um pouquinho para trás, a boca semicerrada e o ar sendo expelido lentamente sem gorgolejos espalhafatosos  como se você estivesse murmurando para você mesmo. Faça o teste para eu ver se você aprendeu direitinho.”
Fiz o teste fingindo um gargarejo de cabeça levemente inclinada para trás para acabar com a amolação do fantasma.

“Splendide, mon ami!”, felicitou-me pelo sucesso com que me saí, o que fez com tão encantadora euforia que cheguei a melhorar da dor de garganta. 

“Se meu bisavô estivesse aqui, seria capaz de abraçá-lo”, prosseguiu dando asas ao tema do bom gargarejar que o empolgara às minhas custas. “E verdade seja dita: sabe com quem bivô aprendeu a gargarejar corretamente? Arrisque um palpite, arrisque.”

Fiz sinal de que não tinha a menor ideia, o que o encheu de satisfação para informar de boca cheia: “Rubim!”  

Repeti meu gesto de ignorância como se indagasse, que Rubim?

“Francisco Alberto Rubim, meu ínclito, que governou o Espírito Santo no começo do século XIX! Bivô trabalhou com ele, sendo pessoa da sua absoluta confiança. O governador tinha faringites agudas que curava com gargarejos de romã, feitos da forma que lhe ensinei. Já contei que bivô era camareiro de Rubim?”

Sinalizei positivo para indicar que sabia da honraria biográfica do seu bisavô, tentando contê-lo em sua enfadonha crônica familiar, mas não adiantou porque o fantasma continuou: “Vou mais longe e afirmo que havia entre eles uma amizade respeitosa. Bivô estava sempre no palácio, à disposição do governador, como se fora seu secretário particular. Quando o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que estava em Vitória, visitou Rubim em 1818 para comunicar oficialmente que ia partir para o rio Doce, bivô participou da audiência.

Foi um tête-à-tête solene em que meu bisavô vestia casaca e colete, e o governador, a farda engalanada de capitão de mar e guerra. Era fardado que ele invariavelmente recebia as pessoas ilustres que iam ao palácio. Aliás, a mesma farda de sempre, com os punhos ligeiramente puídos porque ele não tinha outra de reserva. É por isso que no quadro oficial que dele ficou os punhos da farda não aparecem, sabia disso?”

Sim, eu sabia, e a imagem do quadro me veio à mente:  

“Bivô foi testemunha, continuou o fantasma, de que Rubim tentou dissuadir Saint-Hilaire dizendo em francês que o rio Doce era um inferno. Pela expressão enfer  ele referia-se ao clima quente, às epidemias letais e aos índios que tornavam pavorosa a região do rio Doce.” 

“Seu bisavô falava o francês?”, fiz a pergunta com dificuldade.

“Bivô tinha educação refinada. Ele estudou três anos no seminário de Olinda. Depois desistiu da carreira religiosa porque se tornou maçom. Foi uma questão de princípio moral porque muitos padres foram também maçons. Bivô, porém, condenava essa atitude dúbia. ‘Ou eu sirvo à Cruz ou ao Esquadro e o Compasso’, costumava dizer emproado. No encontro com Saint-Hilaire, foi a bivô que o governador recorreu para redigir a portaria com que municiou o francês para a viagem ao rio Doce. ‘É a minha assinatura nesta portaria que colocará o senhor a salvo de qualquer apuro’, disse Rubim, ao entregar o documento a Saint-Hilaire, segundo bivô me contou. E bivô garantia que a portaria tinha realmente mais força nas terras da Capitania, como era chamado o Espírito Santo, do que o passaporte subscrito pelo Ministro de Estado, que Saint-Hilaire carregava.            

“Seu bisavô também conheceu o príncipe Maximiliano de Wied Neuwied?”, esforcei-me por perguntar dado meu interesse pela figura do notável naturalista alemão.  

“Bela pergunta, meu digno. Pelo que sei, bivô conheceu tanto Maximiliano, quanto seu companheiro de viagem, Friedrich Sellow que, infelizmente, se afogou no rio Doce alguns anos depois. Quando Rubim disse a Saint-Hilaire que o rio Doce era um inferno, talvez estivesse prevendo alguma tragédia com os viajantes europeus que andassem por aquelas brenhas. Eu digo talvez porque, segundo meu bisavô, Rubim vivia repetindo a frase sempre que a oportunidade surgia. Os sertões do rio Doce estavam sendo desbravados nessa época com a fundação de Linhares. Foi Rubim que mandou construir a primeira igreja da localidade, escolhendo para padroeira Nossa Senhora da Conceição, de quem era devoto. Em minha opinião, ele colocou Nossa Senhora dentro do Inferno. Quando fiz esta observação para bivô ele reagiu com indignação dizendo que se houve de fato essa intenção foi uma estratégia militar do governador que decidiu pôr em confronto as forças do Mal, reinantes no Inferno, e as do Bem, representadas por Nossa Senhora da Conceição. O tempo mostrou que foi decisão acertada em que o Bem venceu o Mal, pois Linhares progrediu bastante, argumentava bivô, que admirava Rubim e o elogiava com fervor. De um incipiente quadrilátero de aldeia, à margem do Rio Doce, Linhares se firmou como posto militar avançado no combate contra os botocudos”, concluiu o fantasma. 

“Mas, sobre o que mesmo que nós começamos a conversar”, perguntou coçando a cabeça e franzindo o sobrolho.  

“Sobre gargarejos”, disse eu.

“Caranguejos?!” 

“Gar-ga-re-jos”, explicitei com esforço. 

“É verdade, mon ami, gargarejos e chá de romã com uma pitadinha de anis, se necessário. Se você duvidar do que lhe digo, consulte o Formulário e Guia Médico do dr. Chernoviz , de 1841, na página 275 e vai ver que tenho razão.”

“Mas, do muito que falamos neste nosso colóquio não se esqueça da lição maior: um bom gargarejo se faz com a cabeça ligeiramente inclinada para trás e sem “gargantuas” espalhafatosas (gostou do neologismo?). Se seguir este conselho, em nosso próximo encontro vou poder entender melhor o que você falar. E concluo repetindo o que dizia bivô para quem não sabia fazer gargarejo corretamente: quem gruguleja é peru”. 

Cingi-me mais uma vez a erguer o polegar e a agitá-lo para o fantasma muito mais num sinal de quem o mandava embora do que de quem com ele concordava.   

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