O trágico fim do centro histórico de Vitória

- Você ainda fuma, meu ínclito? – perguntou o fantasma do centro histórico de Vitória.

Eu estava contemplando várias embalagens de antigos maços de cigarros, numa exposição realizada sob a iniciativa de uma entidade de combate ao câncer que mostrava a antiguidade dos males que o fumo causa à saúde humana quando o fantasma saiu-se com a pergunta com que me fumegou.

- Nunca fumei, fantasma! Desse vício preservei-me.

- Pois eu não! Caí na lábia do reclame dos cigarros que usava até atores e atrizes do cinema mudo – oh que saudades do cinema mudo! - para difundir o chique hábito de fumar e contraí o vício sem medir consequências. Quantas vezes assisti a filmes no Cine Central em que Rodolfo Valentino e atrizes como Glória Swanson, que foi uma das minhas paixões cinematógrafas, fumavam cigarros em poses elegantes e sensuais! Eu tinha até um retrato de Glória Swanson, com um cigarro entre os dedos, colado na parte interna da minha cigarreira de ouro. Ainda hoje, quando me lembro do retrato, sinto na boca um longínquo gostinho de tabaco...

O fantasma fez uma paradinha como se desse uma baforada de saudade e arremeteu falante: - Está vendo aí o maço dos cigarros Olga? – e apontou com o dedo descarnado a mesa com vitrine onde se via o maço com a figura de uma jovem de face rosada, boca mimosa, cabelo curto e cacheado, trajando um vestido de brancura imaculada de mangas compridas à moda da década de 20, usando na cabeça um chapéu de aba larga com penacho branco pendendo ligeiramente sobre a testa. O nome OLGA sobressaía em letras brancas, abaixo das quais se lia em vermelho: Sublime Mistura. – Os cigarros OLGA – continuou o fantasma - foram os meus favoritos.

Mas comecei fumando cigarros GAROTO - imagine você, cigarros da marca Garoto tendo na embalagem um meninote rechonchudo desfrutando feliz da vida, como se fosse um doce, um cigarro fumegante. Paguei caro por minha fraqueza, ou melhor, por minha garotice, porque acabei pectário e tive de me tratar em Palmira, Minas Gerais. Já lhe falei sobre isso?

- Já, fantasma, quando me contou que se submeteu até a um pneumotórax que lhe deixou um chiadinho no peito que perdura até hoje, está lembrado? 

- É verdade, mon ami. Relembrando os maus momentos por que passei, chego à conclusão de que fui um sobrevivente dos efeitos maléficos do fumo. Un vrai survivant. Aliás, um sobrevivente do fumo e do rapé, porque antes do cigarro fui um inveterado consumidor de rapé. Ainda me lembro da caixinha em forma de concha que carregava comigo e à qual recorria várias vezes por dia com o estilo e o glamour de um dândi para incisivas aspiradas que me deleitavam com espirros sucessivos. Eu chorava de prazer com atchins estrepitosos. Foi do rapé que passei ao fumo indo parar no pneumotórax.

- Melhor do que Vasco Coutinho que, do fumo que “bebia”, foi parar na excomunhão do bispo Sardinha – relembrei a sina do primeiro donatário do Espírito Santo.

- Um bispo que teve o fim que merecia... – acrescentou o fantasma.

- Tragado pelos caetés... – emendei em minhas recorrências históricas.

- Boa piada, meu digno. Quanto a mim, fui tragado e estragado pelo fumo.

Dei um risinho complacente em paga do trocadilho que ouvira a que acrescentei um passe bem, meu amigo. Mas o passe bem ficou na enunciação porque o fantasma – não fosse ele quem é – impediu-me a retirada.

- Calma lá, meu digno. Nem sequer comecei a nossa conversinha neste feliz e oportuno encontro...   

- O que você tem ainda por dizer? – preparei-me para o que pudesse vir sobre minha cabeça.

 - Não se ponha De guarda porque o que pretendo é lhe dar um aviso de amigo, sobremodo importante, para não dizer vital.

- Que aviso é este, fantasma?

- Lembra-se daquele esbarrão apavorante de que você foi vítima alguns anos atrás na rua do Rosário?

- Como poderia esquecer se até hoje o revivo em pesadelos...

- No entanto, naquele caso, foi apenas – ouça o que estou dizendo - foi apenas, apesar do pavor que lhe causou, o trompaço de um fantasma abrutalhado ressurgido do tempo da rivalidade entre peroás e caramurus em Vitória que quis impedir sua passagem pela rua do Rosário, conhecido reduto dos peróas onde ele o tomou por um adepto dos caramurus. 

- Algo que me pareceu estúpido e anacrônico como tive oportunidade de lhe dizer, apesar de, desde então, ter evitado a rua do Rosário. Mas continuo sem entender por que você está associando o aviso que quer me dar com aquele malfadado encontro. 

- É que agora a coisa está pior, mon ami. Não se trata mais de evitar a rua do Rosário para se safar de um ultrapassado confronto entre peroás e caramurus... Trata-se de evitar vários logradouros do centro histórico de Vitória que estão sendo assolados por hordas de fantasmas da pior espécie. Um amontoado deles, machos e fêmeas que me fazem lembrar o quadro Agora antigo, do português Cândido da Costa Pinto, uma pintura surrealista até no título e que sempre me impressionou muito:

Fuja deles, mon ami. E delas também, que surgem em ondas valquirianas. É deplorável, mas é verdade. Toda uma rica e vasta tradição histórica se esvaindo pelos bueiros, quando não estão entupidos é claro. E sabe por quê? Eu pergunto e eu respondo: porque o centro histórico de Vitória está apodrecendo! A-po-dre-cen-do! Une belle merde! Entra prefeito, sai prefeito, que para mim são uns prebostas, e as promessas de salvar o centro morrem no esgoto! Enquanto isso, a invasão fantasmagórica avança em voos largos e livres. Passar aujourd'hui pela rua Duque de Caxias ou pela 13 de Maio equivale a um acte de courage. A 13 de Maio então está mais degradada do que quando era rua do Piolho. Não duvide se a piolhada d’antanho voltar a ocupar brevemente todo aquele logradouro. Na ladeira Padre Nóbrega, a zumbizada nem sequer respeita o convento de São Francisco em cujo adro com arcadas fazem valhacouto e se amontoam como autênticos sem túmulos. E olha que ali atrás já foi cemitério e ainda deve haver espaço para muitas almas penadas ou despenadas, como você preferir.

E as escadarias?! A do Palácio, a da Misericórdia, a São Diogo já estão devastadas por cavalgadas de maléficos abantesmas que até a mim me apavoram. Precavenha-se, meu amigo! Na escadaria Maria Ortiz, nem sequer admitem a presença da sua heroica patronesse. Ou será matronesse que devo dizer em tempos feminicistas, como estou informado? E você pensa que a invasão para por aí? Que o quê, uma potoca! Na rua Cosme Rolim, ao lado da velha igreja de São Gonçalo, a chusma fantasmagórica desfila simulando uma procissão piedosa em homenagem ao santo. Parece até que carregam uma charola com um São Gonçalo invisível. Aquilate com sua criatividade de escritor o deboche pecaminoso dessa ignomínia porque eu não tenho palavras para descrevê-la! (Ele provocou e minha imaginação correspondeu):

Do modo como o centro de Vitória está se putrefazendo sob a horda dos maus fantasmas – prosseguiu o próprio - dentro em breve tudo isso aqui onde nós estamos vai virar um fogo-fatúo assombroso e inapagável. E o que irá acontecer com os nossos costumeiros e fraternais colóquios? Existe alguma solução para esse trágico fim de uma área herdeira de um passado glorioso?

O fantasma fez a pergunta com uma careta que tanto podia ser de choro como de desespero.

- Solução, fantasma?!  A solução que me ocorre, meu digno amigo (não pude negar-lhe o tratamento no transe em que se encontrava), e aproveitando a deixa das suas últimas palavras, é parodiar alguns versos do hino espírito-santense para clamar e reclamar alto som e indignada fúria:

Venham círios, coroas, venham flores,
Ornar os despojos desta cidade!

Ao ouvir minha resposta, o fantasma soltou um soluço de mistura com um chiadinho lamuriento, enxugou com dedos furtivos duas lágrimas pegajosas e faltou pouco para que eu e ele, impelidos pela mútua sensação de perda irreparável, nos abraçássemos comovidos com o trágico fim do centro histórico de Vitória. E se dos céus irrompessem os compassos dolentes da Marcha Fúnebre de Chopin coroariam com clave de ouro as exéquias de que eu e o fantasma compartíamos.

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