O fantasma e as fontes do Parque Moscoso

Numa rápida passagem pelo Parque Moscoso eu dei uma assentada num dos bancos da Concha Acústica quando me surgiu o fantasma do centro histórico de Vitória pondo-se a dançar freneticamente no palco cimentado à minha frente com saltos bailarinos de causar inveja ao soviético Rudolf Nureyev. Enquanto dançava com agilidade fantasmagórica, esticava os braços por cima da cabeça batendo as mãos uma contra a outra como se quisesse estalá-las, curvava-se elasticamente até quase botar o nariz no chão e ria, ria esgares medonhos de serem vistos. De repente, estacou no ar a dois palmos do solo, olhou-me seriamente com os olhos embaçados e remelentos de terra, e, para meu espanto, explicou: “Estou dançando ao som da parte mais intensa da Dança dos Sabres, de Aram Khachaturian, que ouço mentalmente: tantantantantantantantantatantant-aaaan... Quer dançar comigo?”

“Mas eu não estou ouvindo nada, fantasma...! Você está ouvindo mentalmente em Ré Menor ou Sol Menor?”

“Pouco importa o tom, meu ínclito. Se você não ouve, eu trauteio a música enquanto nós dançamos e não precisa ser de rosto colado”, disse explodindo num riso crocodilesco.

De imediato, a imagem burlesca percorreu meu pensamento: eu dançando aos pinotes na Concha Acústica ao som de uma música que meu acompanhante trauteava, mas que só eu ouvia enquanto também só eu o via cantarolando e dançando, sob o risco de ser considerado um louco pelas pessoas que me flagrassem naquele transe alucinado. Pior ainda se me fotografassem com um celular, num clique indiscreto e humilhante que viralizasse nas redes sociais! Dei então uma boa risada em troca da gargalhada debochada do fantasma cujo sentido ele pegou no ar.

“Já sei, meu digno. Você não quer passar por mentecapto. Mas, preste atenção no que vou dizer: se quem canta seus males espanta, quem dança espanta-os muito mais. E de males você deve ter a alma pejada. Liberte-se, mon cher. Dê une preuve de courage. Vem, me dê a mão!” – e esticou para mim a manopla horrenda da qual me esquivei num desvio de acrobata. Mas se me livrei do indigesto gesto, não escapei de tê-lo sentado ao meu lado. 

“Já que você não quer dançar, vamos conversar.”

“Sobre o quê, fantasma?” indaguei aborrecido.

“Ora, meu ínclito, assunto está sobrando a nossa volta. Vede, vede!”, disse abrindo os braços num gesto ecumênico, enquanto girava incrivelmente o corpo sobre a cintura para designar todo o parque ao redor da Concha Acústica.

“Temas não faltam: o parque e toda a sua vizinhança; a Ilha dos Amores com as ruínas clássicas e as pontes imitando troncos de árvores transpondo o lago artificial; a fonte Jerônimo Monteiro, o grande governante que inaugurou o parque em 1912; a Fonte dos Cavalos; o palacete azul da Vila Oscarina; o antigo coretinho que acabou sem que ninguém desse um pio a seu favor, tal qual o Orchidário com o anfiteatro das orquídeas e seu ch no nome; os saudosos fotógrafos lambe-lambes; a própria Concha Acústica...  Allez, allez, mon ami! Escolha um tema que lhe toque a alma, desde que não seja o ido e sumido Parque Tênis Clube tão grato às suas saudades menineiras do qual já me falou tantas vezes.” 

“Debulhe você primeiro o tema da sua preferência, fantasma”, disse-lhe dando a primazia discursiva, adivinhando que, do Parque Moscoso, quem queria falar era ele.

Com uma cruzada de pernas que o deixou à vontade para soltar o verbo, discorreu satisfeito: “Começo pela fonte que recebeu merecidamente o nome do incomparável Jerônimo Monteiro. Eu, que na cerimônia de inauguração do parque estava ao lado de Paulo Motta, com seu indefectível terno branco, chapéu de palhinha, gravatinha borboleta, sapatos de bico fino e bigodão espesso e que foi o autor do projeto paisagístico do parque inspirado em modelo francês da época,

revelo-lhe um segredo que ninguém sabe: quando a água da fonte jorrou cristalina eu, seulement moi, vi os olhos do presidente Jerônimo Monteiro (lembre-se de que foi ele quem dotou Vitória de água encanada) marejarem uma furtiva lágrima de emoção. Nem era para menos, mon cher ami. Naquele momento, a cidade de Vitória igualava-se a inúmeras grandes cidades do Brasil com chafarizes ornamentais originários da Europa, de onde se espalharam mundo afora. E convenhamos, meu ínclito: é realmente um chafariz de encher os olhos d’água. Olhe só”, concluiu o fantasma apontando em direção à fonte, faltando pouco para que dos seus olhos cavos também destilasse  uma lágrima que, no seu caso, seria no mínimo extemporânea. 

Enquanto eu me recompunha da espiadela ao chafariz o fantasma prosseguiu, voltando-se agora para a Fonte dos Cavalos, à direita de onde estávamos:

“Já que estou com a palavra, você conhece alguma particularidade interessante sobre a Fonte dos Cavalos?”

“Sei que ela é bem antiga...”

Par Dieu, que resposta chocha para um pretenso historiador! Quando fiz a pergunta estava me referindo a algum detalhe singular como, par exemple, o que está escrito em torno do globo do chafariz... Savez vous qual é a frase? Se sabe, diga lá.”

“Aí é querer demais, fantasma!”, respondi derrotado.

“Pois está escrito ‘Villa Henrique Moscoso – Homenagem ao Trabalho’ (e vila com dois ll), num justo preito à memória de Henrique Moscoso, que governou o Espírito Santo entre 1888 e 1889. Foi ele quem criou a Vila Moscoso, onde o parque foi localizado e conserva, felizmente até hoje, o nome que tem”, disse o fantasma plein de lui-même. E cheio de si mesmo, me provocou: “Falei sobre as fontes do Parque. Você vai falar sobre o quê, mon ami?”

Nascido que sou na rua José Bonifácio, pertinho do Parque Moscoso, toda a minha infância a ele estreitamente ligada, confesso que me senti sentimentalmente instigado a fazer um dueto de reminiscências com o fantasma, talvez ao som em surdina do tantantantantantantantantatantant-aaaan da Dança dos Sabres... Poderia então ter falado da minha admiração pelo belo mural da autoria de Anísio Medeiros, aliás, um dos poucos existentes em nossa cidade, que reproduz um cardume estilizado na parede do prédio do antigo Jardim da Infância Ernestina Pessoa, na esquina da rua José de Anchieta com a 23 de Maio; poderia ter falado sobre as ruínas clássicas da Ilha dos Amores, cenário de tantas e tantas fotos dos que visitavam e visitam o parque, inclusive uma delas de meu pai e minha mãe quando ainda eram noivos; poderia ter falado do coretinho catita que, por memória, só deixou fotos que o tempo empalideceu.

Poderia ainda rememorar as figuras emblemáticas dos fotógrafos lambe-lambes e me referir em particular à comovente crônica de Marilena Sonegheti,  com o título Labirinto, sobre a comitiva familiar que acompanhou um bebezinho morto em seu caixão de anjo para ser fotografado ali  no parque...

Mas, na verdade, não estava a fim de espichar conversa, o que me levou a pedir desculpas ao fantasma deixando o assunto adiado para outra ocasião.

Ele aceitou minha escusa, dizendo: “Trés bien. E enquanto você parte, vou voltar à Concha Acústica para continuar dançando embalado agora pela Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner.”

Assim falando, lançou-se tão efusivamente aos seus faniquitos dançarinos que mesmo a distância eu o ouvia trautear tantantantan-tan-tantantantan-tan-tantantan-aaaan...

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