O fantasma e os anúncios do bonde

- Mãos ao alto e não vai dizer que não! – apontou-me o fantasma do centro histórico de Vitória a mão direita com o polegar para o alto e o indicador em riste imitando um revólver de meter mais medo do que se fosse verdadeiro, rendendo-me na ladeira Dom Fernando quando eu ia em direção à cidade alta. Em retribuição à simulação de ataque levantei os braços e ainda brinquei: - Não atire, por favor. Pode levar minha carteira.

O fantasma deu uma risada com ranço de lameirão e falou satisfeito: - Vejo que você está de bom humor, meu digno. Mas não é a carteira que eu quero, e sim sua memória.

- Vai roubá-la de mim? – indaguei alimentando a brincadeira.

- Roubá-la, não. Testá-la a partir aqui da rua Dom Fernando tão intrinsicamente ligada a sua vida.

- Intrinsicamente?

- Sim. Não era ali na esquina, no começo da rua, em que ficava o colégio da professora Dona Marazinha onde você fez o curso primário? Não era por esta ladeira que você subia para, mais tarde, ir para o ginásio São Vicente de Paulo, em frente à igrejinha de Santa Luzia? Não era por aqui que passava o bonde que tantas vezes você utilizou quando morava no Parque Moscoso? Toda esta ligação me permite dizer, sem medo de errar, que você é um dom fernandino de quatro costados...

- Tenho de reconhecer, meu caro fantasma, que você se faz sherloqueanamente convincente em sua conclusão...  

- E isso é apenas para início do meu teste, meu ínclito. Como acabei de voejar sobre o viaduto da Caramuru onde está encravado um resto de trilho do bonde, lembrei-me de fazer, no primeiro encontro que viesse a acontecer entre nós, um joguinho de memória com você para ver quem se recorda de mais reclames que havia nos bondes de Vitória. Até porque, em outro encontro que tivemos você manifestou a possibilidade de um dia conversarmos sobre os bondes de Vitória e seus reclames. Acho que a hora chegou de cumprir a promessa.  

Bonde sempre foi um tema recorrente em minhas saudades vitorienses de forma que me senti sentimentalmente dominado pelo desafio razão pela qual resolvi aceitá-lo, apesar de reconhecer de antemão a superioridade da memória do fantasma sobre a minha.

- Em que vai consistir o jogo? – perguntei atiçado.

- É simples. Eu lembro um reclame e você outro do mesmo gênero. Ganha quem lembrar mais. Só não vale o reclame do Rhum Creosotado que falava no passageiro que via o belo tipo faceiro que ia ao seu lado etc. e tal... Porque estes versinhos, até quem não andou de bonde, sabe de cor, pelo menos é o que eu penso. E já que você aceitou o desafio dou-lhe a honra da primeira lembrança.

– Então vai uma de higiene pessoal: “Sabonete Lever, o sabonete das estrelas” – disse abrindo a contenda.

- “Nada de CC comigo: uso Lifeboy” – contrapôs o fantasma.

- “Vale quanto pesa: o sabonete ideal para o banho” – insisti nos sabonáceos.

- “Sabonete Dorly: preço por preço é o melhor” – competiu o fantasma.

– Creme dental Odol – gritei do meu lado derivando para os dentes.

– “Creme dental Nemo, à base de leite de magnésia” – flechou-me o fantasma.

– “Pó de arroz Eucalol, experimentar é gostar” – ataquei em outro campo.

– “Loção Royal Briar para cabelo que tem o perfume que deixa saudade” – defendeu-se o fantasma.

– “Cafiaspirana – Dor, gripe e resfriado” – saquei do combate a dores, gripes e resfriados.

– “Instantina: não se deixe apanhar pela gripe” – disse o fantasma fingindo um espirro sem virar a cara de lado.

– “Mitigal, extingue prontamente as coceiras” – respondi simulando uma coçação pelo corpo causada pelo espirro do fantasma.

– “Aristolino, um sabão que é um remédio, um remédio que é um sabão para tratar e evitar todas as moléstias do couro cabeludo” – prontificou o fantasma.  

– Essa não, fantasma! – obstei de plano. – Eu citei um anúncio de coceira e você me vem com um sabão para o couro cabeludo? Na sua resposta não há correspondência com a minha lembrança. Portanto, ganhei a parada!  

– Ganhou nada! Qual a moléstia do couro cabeludo que não implica coceiras, sejam as provocadas pelas caspas, sejam as decorrentes das comichões irritantes? Mas, para que você não se vanglorie de vencedor, reforço minha resposta com a pomada Minâncora “para feridas, eczemas, coceiras...” Prossigamos no embate.

- Vá lá que seja e pegue esta de xarope: “Tosse? Bromil!” - disse eu.

- Xarope por xarope, rebato de imediato: “Xarope São João”. E dou de trocado a lembrança do homem do reclame com os olhos esbugalhados, amordaçado pelo lenço gigantesco puxado por duas mãos aladas, abaixo da frase: “LARGA-ME... DEIXA-ME GRITAR.” Agora é a sua vez.   

 

Lembrando-me da intragável Emulsão de Scott feita com óleo de fígado de bacalhau que tantas vezes tomei na minha infância empurrada garganta abaixo pelas colherinhas maternas, dei-a como resposta.  

- Ao seu fígado de bacalhau respondo com o Elixir de Inhame que “depura, fortalece, engorda” – disse o fantasma. 

Nesta altura da disputa, já tinha esgotado o meu arsenal de lembranças dos antigos anúncios dos bondes. Para não me declarar derrotado resolvi sacar uma brincadeira para cima do fantasma, e apregoei enfático: “Elixir de milho do Dr. Sabugosa, o tônico preferido das crianças.”

O fantasma me encarou de cima em baixo, franziu horrivelmente o cenho, vasculhou na memória de onde eu poderia ter tirado o elixir do Dr. Sabugosa, e finalmente perguntou desconfiado: - Você está blefando ou alguma vez tomou esse xarope quando era criança?  

- Cansei de tomar, lendo Monteiro Lobato... – respondi sorrindo.

Ele entendeu a brincadeira, que da minha parte era uma confissão de derrota, e disse triunfalmente: - Contra o seu inexistente elixir do Dr. Sabugosa disparo uma rajada de metralhadora: “Nutrogenol Granado: Elixir Granulado e Gotas contra fraqueza, anemia, raquitismo, neurastenia, etc. Tônico do esgotamento nervoso”; “Galactogeno: toda mãe deve amamentar seu filho. Uso do Elixir realiza este ideal”; “Xarope de Grindela de Oliveira Junior...”

- Bandeira branca, fantasma. Já fui atingido! – intervim sem me preocupar em discutir se de fato todos os anúncios citados pelo fantasma apareciam nos bondes. Até porque eu tinha essa dúvida quanto aos que eu havia mencionado em nosso jogo da memória.

- C’ést fini? – perguntou meu oponente.

- É o fim – confirmei. – Desde o começo eu sabia que sua memória é melhor do que a minha. Por isso, fique você no bonde dos reclames enquanto eu pulo fora. E cantei parodiando alegremente Alvarenga e Ranchinho:         

“Seu condutor,/dim, dim, dim./ Seu condutor,/ dim, dim, dim/ Pare o bonde /pra descer o perdedor...”

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