O fantasma, os celulares e a Internet

Venho de presenciar um trágico acidente – disse o fantasma do centro histórico de Vitória, colhendo-me ao lado do Teatro Carlos Gomes. – Uma jovem caiu dentro de um bueiro sem tampa e fraturou a cabeça. Ela caminhava falando com um objeto na mão, uma espécie de cigarreira, não viu onde pisava e estatelou-se no chão. A propósito, meu digno, que objeto tão misterioso é este que eu tenho visto seguidamente na mão de todo mundo? Quando a jovem caiu muitas pessoas correram na direção dela, eu pensei que fosse para socorrê-la, mas, na verdade, usavam o mesmo objeto misterioso como se estivessem tirando retrato do corpo sangrando no chão, com uma das pernas toda ralada ainda dentro do bueiro. Eu notei até que muitas pessoas esticavam o braço acima da cabeça parecendo que tiravam uma foto delas mesmas com o corpo da vítima espichado no solo. Que coisa tão estranha e macabra, meu digno! Nunca pensei que fosse testemunhar uma cena destas depois de morto.  Pode me explicar a razão dessa maluquice?

Eu não era a pessoa certa para explicar ao fantasma o que era um celular, como funcionava, como revolucionou por meio da Internet a difusão do conhecimento e das comunicações entre bilhões de usuários no mundo inteiro. E não era a pessoa certa porque eu mesmo não sou obcecado pelo celular, conquanto tenha o meu para ocasionais emergências. Mas, por outro lado, senti que precisava colocar o fantasma do centro histórico de Vitória a par de, pelo menos, algumas noções primárias do que seja um celular. Então, enchi-me de brio, e falei:

- O que a jovem acidentada estava vendo não era uma cigarreira, meu caro fantasma, mas um celular. E o mínimo que posso dizer é que o celular é uma espécie de telefone portátil e sem fio que permite a comunicação instantânea (diz-se conexão) com outros celulares pelo mundo afora, um aparelho tão fantástico que além de telefone funciona como meio para divulgar conhecimentos e informações, divertir as pessoas, mandar mensagens como se fossem telegramas, navegar (outra expressão própria da Internet) por diferentes pontos da Terra sem que se saia do lugar e até – pasme você – fazer compras e pagamentos de dentro de casa ou do local de trabalho. Além, é claro, de tirar fotografias. Aliás, tirar fotografias é uma das principais compulsões dos usuários dos celulares, principalmente as chamadas selfies, em que eles mesmos aparecem na foto com o objeto fotografado, como você viu muita gente fazendo com a morta do bueiro. E saiba, fantasma: eu nem sequer disse um décimo do que um celular permite fazer.

- Não acredito que esse aparelho exista! – disse o fantasma, o ar de descrédito tão ostensivo que dava até medo olhá-lo cara a cara.

- Não acredita? Pois podemos tirar a prova diante dos seus incrédulos olhos - disse eu sacando meu celular do bolso. – Por meio deste aparelhinho, e entrando na Internet, podemos nos conectar (frisei a expressão) com um incalculável mundo de informações que no seu tempo, meu caro fantasma, estava recolhido às páginas das hoje ultrapassadas enciclopédias.

- Você está querendo dizer que todo o conhecimento humano está disponível nesta tal Internet e que por meio dos celulares chega-se até ele?

- Pelo menos, tudo o que eu quis pesquisar até hoje achei na Internet – afirmei.

O fantasma esboçou uma cara de sarcasmo que o tornou mais medonho do que é e resolveu tirar a prova. - Se é assim, veja o que a sua prodigiosa Internet diz a meu respeito... – e deflagrou uma gargalhada desafiadora, que me soube venenosa.

Rapidamente, enquanto o fantasma esticava a cabeça sobre meu ombro para observar melhor a telinha do celular a ponto de me fazer sentir a sua respiração pesada e repulsiva, entrei no Google e, com toques ligeiros, digitei fantasma do centro histórico de Vitória,indo parar no site Tertúlia Capixaba, do meu amigo o escritor Pedro J. Nunes. Em seguida, embasbaquei-o com a série de informações que o site apresentava sobre ele.

- Par Dieu, sou eu em pessoa que está descrito aí – murmurejou espantado.  

- Eu não lhe disse? Mas tem mais, meu caro fantasma. Veja agora o que eu vou fazer e que está bem longe de ser coisa do outro mundo, isto é, do mundo em que você vive.

Criado o suspense, entrei no Google Earth e acessei o túmulo do fantasma, no cemitério Santo Antônio.

- Reconhece o que está vendo? – perguntei com a superioridade de quem tivesse inventado a Internet.

- É o meu túmulo! – balbuciou o fantasma com olhar estupidificado. 

- Que por sinal está mal cuidado... – comentei.

- É porque não tenho quem cuide dele – justificou-se em tom lamurioso.

- Então, percebe agora por que o celular está tão difundido no mundo? Viu quanta coisa ele permite? Você está tendo uma amostra mínima dessas possibilidades no campo do conhecimento e da comunicação humana, algo que eu chamaria de transcendental. E quero lhe dar os parabéns pela primeira experiência que você acaba de fazer como internauta.

- Internauta?!

- É como se denominam as pessoas que navegam na Internet – esclareci. – E com esta rapidíssima incursão que fizemos por meio do meu celular, você já deve ter uma pálida ideia da mudança radical e definitiva que a Internet e os celulares trouxeram à vida do homem moderno. Sabe que a própria Igreja Católica elegeu Isidoro de Sevilha como santo padroeiro da internet? Quer saber por quê? Veja comigo.

Com o fantasma literalmente pendurado no meu ombro, recorri novamente ao Google, de onde li para meu embasbacado copiloto: “Santo Isidoro de Sevilha (c.560 – 636) foi o primeiro escritor cristão a compilar uma summa do conhecimento universal em sua obra-prima, Etymologiae, de característica enciclopédica, o que fez dele, por sagração da Igreja Católica, santo protetor dos historiadores e, em 1995, padroeiro da Internet e dos internatuas por deliberação do Papa João Paulo II”.

- Deixa eu lhe fazer mais um pedido – disse o fantasma aproximando-se ainda mais do meu ombro, o que procurei evitar. – Vê para nós o que a Internet informa sobre o grande Jerônimo Monteiro.

Foi ele pedir, fui eu lhe mostrar: “Jerônimo de Souza Monteiro governou o Espírito Santo entre 1908 e 1912. Foi um dos mais brilhantes administradores do Estado. Suas realizações modificaram as condições de vida dos capixabas e deram ao Estado oportunidade de crescimento econômico. Seu governo pode ser considerado uma era de progresso revolucionário...”

Depois de ouvir o que eu li o fantasma decaiu num silêncio de morte antes de perguntar: - Será que por meio dos celulares é possível a comunicação entre os vivos e os mortos?

- No momento ainda não, meu caro, mas, talvez num futuro próximo... – pilheriei.

- Vous avez raison, mon chéri. O celular, mesmo sem conectar (não é assim que se fala?) vivos e mortos, é um aparelho fantástico. E já que você ainda está com ele na mão tira uma foto sua ao meu lado - pediu o fantasma.

- Muito a contragosto atendi ao seu pedido. Felizmente, porém, a figura do fantasma não saiu na foto. Ao meu lado apareceu apenas a sua bengalinha, mas de tal forma captada que parecia que eu é que a estava utilizando. Dos males, o menor.

 

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