Professor Amâncio Pereira, um esquecido

Francisco Aurelio Ribeiro

Todo mundo sabe que a memória capixaba de seu passado, de sua história e de seus personagens históricos é uma vaga lembrança. Dentre essas figuras esquecidas, hoje, está a do professor Amâncio Pinto Pereira, nascido em Vitória, em 1862 e aqui falecido, em 1918. Diferente de seu filho, o também professor e advogado Heráclito Amâncio Pereira (1894-1957), um dos fundadores da Faculdade de Direito, núcleo formador da futura Universidade do Espírito Santo (1954), federalizada em 1961, que teve o centenário de seu nascimento lembrado e comemorado, passou batido entre nós o centenário de morte do Professor Amâncio Pereira, ocorrido em 2018. Felizmente, o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo (NEPLES), do qual fui um dos fundadores junto ao PPGL da UFES, aceitou a indicação do nome do professor Amâncio Pereira para ser o homenageado no VIII seminário sobre o autor capixaba, o “Bravos Companheiros e Fantasmas”, a ocorrer em setembro deste ano. Tomara isso incentive a nova geração de estudiosos da literatura produzida no Espírito Santo a conhecer um pouco da obra desse que foi o principal escritor de sua época, um polígrafo, que escreveu contos, romances, poemas, crônicas, artigos e, sobretudo, peças teatrais de diferentes espécies e modalidades, hoje quase inexistente nas bibliotecas e arquivos públicos de nosso estado.

De origem humilde, o professor Amâncio era filho natural de Maria Teresa dos Remédios, foi criado por uma tia, Francisca Pinto Pereira, a Dona Chiquinha de Caçaroca, de quem herdou o sobrenome e de quem cuidou até a morte, em 1909, tendo recebido uma educação reservada à elite da época. Fez o primário com o conceituado professor Aristides Freire (1860-1922), e chegou a cursar o Ateneu Provincial, colégio secundário criado em 1873 para preparar a elite masculina para os cursos superiores. Em 1879, ainda estudante no Ateneu Provincial, foi um dos criadores do Grêmio Saldanha Marinha, de feição republicana, manifestando-se, desde moço, em favor da abolição da escravatura. O professor Amâncio Pereira era descendente de negros, não se sabe se pela ascendência materna ou paterna. Por sinal, a maioria dos habitantes do Espírito Santo, em meado do século XIX, era mestiça e era quase igual o número de pessoas pardas e o de brancas, cerca de 14 mil, declaradas no levantamento estatístico de 1856. No entanto, por falta de recursos financeiros, Amâncio Pereira não pôde fazer o curso de Ciências Jurídicas, reservado aos ricos, passando a atuar na imprensa e no magistério primário, tendo-se formado no Curso Normal, criado em 1871, e feito o curso do “Método João de Deus”, dado pelo professor Silva Jardim, de SP, em 1882 a convite do governador e escritor Inglês de Souza. De 1883 a 1888, foi professor em Anchieta, sem deixar o jornalismo, as letras, o teatro e a música. Dessa época, são suas primeiras obras, Miscelâneas, poemas, 1884 e Deomar, drama em 3 atos, escrito e encenado em 1888. Seu best-seller foi Noções Abreviadas de Geografia e História do Espírito Santo, 1ª ed. em 1894 e 5ª em 1914. Afonso Claudio, em 1912, o considera fundador da prosa de ficção no Espírito Santo, e Oscar Gama, em 1987, diz que ele foi o criador do teatro infantil no Brasil, em 1915. Quando morreu, de colapso cardíaco, em 1918, era o maior escritor capixaba de sua época e estava preparando a segunda edição do “Almanak”, lançado naquele ano, e uma revista teatral para ser encenada pelo Grêmio 03 de Maio, criado por ele e com o fim de arrecadar verbas para a construção da catedral.

Após a sua morte, foram feitas várias homenagens, na Assembleia Legislativa, no Ginásio Espírito-santense, no IHGES, do qual foi um dos fundadores, e seu nome foi dado a uma rua, em Jucutuquara e a uma escola, em São Mateus. No entanto, sua obra ficou esquecida e nunca foi lembrado como escritor em nenhuma antologia feita no Espírito Santo. Somente sua obra teatral foi analisada por Oscar Gama, em 1987, em Teatro Romântico Capixaba, com a publicação de duas de suas comédias: O tio Mendes e Virou-se o feitiço, de 1894. Para reparar essa lacuna, seguem o poema “O Escravo” e o trecho final do conto autobiográfico “Leonina”, ambos publicados em O Baluarte, Vitória, 1882, de sua primeira fase romântica.

O Escravo

A José do Patrocínio

Cantai, mocidade, cantai sempre
Do cerúleo horizonte o seu clarão,
Detestando do mundo a entidade,
Que comercia c’a pobre escravidão.

É tempo! e no trono sacrossanto,
Tesouro maior da cristandade,
Arrancando-lhe do escravo o vil ferrete
Dai-lhe em troca o sublime: a “Liberdade”!

Espancai estas trevas enegrecidas
Em que vê-se somente a tirania;
Deixai que irmão nosso sem ventura,
Veja ao menos com prazer a luz do dia.

Deixai qu’ele ao menos ore a Deus,
Tendo no coração suma alegria;
Qu’ele arranque de seu peito amargurado,
O peso do dissabor – da agonia.

Arrancai de seus pulsos as algemas
Que lhe impõe o dever do cativeiro.
Que no belo fulgir de linda estrela
Lhe acena a sorrir porvir fagueiro.

Que Cristo na sua lei divina
Não criou essa vil profanação,
Que ostenta o poder do ouro infame,
No comércio da infeliz escravidão!

Tende em vós o laurel de tanta glória.
Expargi no seu seio a “Liberdade”.
Arrancai-o do acre cativeiro,
Daí-lhe: “Pátria, Poder”, dai-lhe a “Equidade”.

(Vitória, 07/09/1882)

Leonina (Cenas Contemporâneas)                

A Ubaldo Pereira

(Conclusão)

Chega o dia do casamento. Recebem-se em matrimônio às 4 horas da tarde. Muita festa, muita alegria e em tudo poesia.

Sucedem-se dias e o amor de Leonina para Antenor já não era um amor de esposa, era um amor de mãe.

Leonina tinha por ídolo o seu Antenor. Para eles a vida tinha apenas o fim de trabalharem para suas prosperidades e glórias.

Três meses depois de casado, fora Antenor demitido “a bem do serviço público” do lugar que ocupava, por motivo de política, quando ele ainda não se envolvia no seu “mare magno”.

Porém, Antenor recebeu esta resolução de braços abertos, não deixando por isso de ser ainda honrado e honesto, sabendo viver pela força de seu trabalho, sem ser nesse tempo decorrido pesado ao comércio; pois, sendo artista, glória esta de sua vida moral, apesar do artista nada valer no Brasil, recebe do público as palmas e da imprensa a exaltação, tendo em compensação não ser conduzido a caprichos políticos, gozando de direito, respeito e independência ao lado daquela que sendo esposa sabe ser mãe.

(Vitória, 11/11/1882).

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