Estamos vivos?

Fernando Gasparini 

I

O que é leptospirose? A participante do programa de TV terá de acertar dentre três opções: um jogo de cartas, uma doença ou um tipo de dinossauro. O apresentador estimula a ansiedade e o nervosismo. Se ela errar, será fatal: os pais dela serão atirados numa banheira de água fria.

As cenas banais da televisão são descritas no livro Mortos vivos, de Andréia Delmaschio, de forma a revelar o seu aspecto ridículo e infame. Os relatos levam o leitor a interpretar os programas televisivos por meio de uma outra temporalidade: a da leitura.

A descrição é sintética. À primeira vista, insinua-se até um certo desleixo no trato com a linguagem e com a forma. Engano. A barbaridade da coisa assistida pela TV se revela na rudeza com a qual os eventos são contados. Por outro lado, a escritora chama atenção para pequenos detalhes, já imperceptíveis aos espectadores acostumados a horas e horas diante do fluxo contínuo da telinha.

Por exemplo, a cabeça sempre baixa de Janiscleide, a paraibana que por ser muito feia foi abandonada pelo marido. Passada por uma “transformação” estética, Janiscleide foi à televisão ralhar contra o companheiro – e de sobra ser instrumento de propaganda da invencionice milagreira da indústria estética, anunciante do programa.

“O cabelo foi tingido e os cachos crespos se renderam à chapa quente, mas a doméstica paraibana que o marido rejeita continua sempre ali, sob a derme, os cabelos e as roupas de uma atriz global” – é um trecho do conto.

A narrativa seca requer estômago para digeri-la. A capa do livro é um aviso: uma gravura da série “Hemorragias”, de Maurício Salgueiro. Na montagem, um sangue escorre como um corte profundo na pele. Mortos vivos provoca o surgimento de uma literatura atenta às imagens midiáticas que recriam a violência e a miséria humanas.  

É aconselhado a quem deseja escapar das armadilhas de certos pastores evangélicos, pois mostra em detalhes os procedimentos adotados para convencer os fiéis a pagarem o dízimo, o ato mais importante para a igreja.

Diferentemente de outros países em que a TV se apresentou a uma sociedade já previamente letrada, no Brasil o veículo se tornou o principal e quase único meio de informação e entretenimento para uma população sem acesso à leitura. É de longe o instrumento de comunicação mais influente do Brasil, penetrando homogeneamente a sociedade em vários segmentos nas diversas camadas sociais em todas as localidades.

Daí a necessidade de se criar novas formas de “assistir” à telinha. Em termos didáticos, alfabetizar o espectador quanto ao funcionamento dos espetáculos encenados diariamente na residência de milhares de brasileiros – os princípios e motivações. A literatura aparece aí como instância de diálogo e confronto, abrindo percepções críticas – urgentes e necessárias.

II

O livro suscita angústia quanto à condução do destino da humanidade nos primeiros anos do milênio. É uma tentativa de despertar consciência acerca das crueldades cotidianas, que insistem em permanecer invisíveis.

As imagens narradas saltam da televisão e passeiam por paisagens oníricas – em que pedaços de gente são comercializados no mercado ambulante – e chegam às radiografias médicas. Estas revelam o espetáculo da “evolução científica” e detectam, com precisão, a verdade nua e crua dos fatos:

“Eu assistia à exibição das imagens em três dimensões. A enfermeira me ofereceu pipocas. (...) Era terrível seguir com os olhos a doença evoluindo fora de mim, em imagens cercadas de efeitos especiais, o que tornava a sensação ainda mais dolorosa.” A reação apática dos médicos e da enfermeira também não escapa à observação da personagem.

Mortos vivos traz ainda relatos dos pedintes de ônibus: “é duro ver um filho com fome e não poder fazer nada”. Uma frase ouvida todos os dias por passageiros das médias e grandes cidades do país. Aqui é destacada – como um grito, um desabafo, num texto sem pretensões estéticas nem vanguardísticas. Apenas um contar, como quem conversa com um colega.

Sobre o que afinal há de se escrever? Fazer arte para tornar a realidade social menos insuportável? Será? Tais questões estão latentes no mosaico de espelhos reversos de Andréia Delmaschio, em que se refletem unívocos a dor e o humor, a crueldade e o divertimento, a indignação e o comodismo, a realidade e a ficção, a vida e a morte.

Os paradoxos são o instrumento para fugir do senso comum e oferecer uma compreensão aguçada dos dias de hoje – principalmente no seu traço escatológico e apocalíptico. A partir desse aspecto, o livro inaugural de “ficções” da autora traduz a sua dimensão existencial. Desastres de avião, tsunamis, o enterro da avó na roça – “a pessoa mais viva nos arredores”: o ser humano diante da morte. E a morte em plena vida.

“Se você não me matar, você me mata!”. A citação de Maurice Blanchot é uma dentre tantas de vários autores que abrem os micro-textos. São chaves de leitura, e permitem entrever as vivências literárias da escritora, por quais caminhos o ali exposto passou até se consumar em texto.

A própria questão da autoria – quem é o dono da palavra? – é uma tensão em Mortos vivos. Com doutorado em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Andréia Delmaschio abordou o tema em sua tese, tendo como base o livro Budapeste, de Chico Buarque.

E encontra subitamente com o autor, o objeto da pesquisa, em suas viagens semanais ao Rio. O resultado está narrado no primeiro conto de Mortos vivos, intitulado “Ludo Real”. Vale à pena conferir.

 

Fernando Gasparini nasceu em São Gabriel da Palha, em 19/10/79. Graduou-se em jornalismo pela UFES (2002) e fez mestrado em Comunicação pela UFF (2006). É fundador e coordenador do Projeto Sivuca - Maestro da Sanfona, de resgate da memória e levantamento do acervo do artista. Publicou artigos e reportagens sobre o tema na imprensa em todo o País.

 

Leia outros textos

Voltar