A névoa, o menino e o embornal

Fábio Daflon

Lançado em 2020, no, literariamente, profícuo ano da literatura capixaba, o livro A névoa, o menino e o embornal, de Matusalém Dias de Moura, se nos afigura quase como um perfil do autor. Mas o perfil, se nos reportarmos à Idade Média, era como se pintavam os retratos naquele tempo. Na orelha do livro, o retrato do autor está em oblíquo, a orelha esquerda dele aparece e a direita mostra apenas pequeno pedaço do pavilhão auditivo. O mais é o olhar cativante e o sorriso largo sob o nariz anasalado que desconhece a empáfia. Hilda Hilst, citada de memória, certa vez disse que o leitor não deve conhecer o autor para não se desapontar. Além de conhecer o procurador da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, sabia-o, até então, principalmente poeta de variados estilos, autor de haicais singelos, quadras e trovas e sonetos, nunca lera antes nenhum dos seus livros de prosa, sei agora que já publicou cerca de trinta títulos.

Nas páginas do livro, encontramos dados sobre como encara a carreira de causídico; antes, remeto-me a uma piada: Um Santo e um Advogado morreram em mesma hora, minuto e segundo, e chegaram ao céu juntos. Lá no portal do céu, São Pedro esperava as almas na porta, com o céu todo em gala e repleto de anjos. O advogado disse para o santo: Santidade, São Pedro o aguarda para recebê-lo. São Pedro ouviu e disse: Não senhor, é para você mesmo, doutor, a festa no céu. Para ouvir o doutor retrucar: Mas esse homem é um Santo! Santo aqui tem todo dia, advogado é o primeiro. Usei o humor para dizer o que Montaigne em um ensaio já disse: os juízes deveriam ser justos, não vender sentenças, não trabalhar apenas em prol dos mais ricos. De forma menos agressiva que Montaigne, Matusalém diz a mesma coisa, e diz que são poucos os advogados assim. Se me referi à festa no céu, foi porque tenho certeza de que o advogado lá chegado para ser recebido por São Pedro, não é Matusalém Dias de Moura, vivinho entre os escritores capixabas.

Vou falar em latim, porque na justiça se usa muito: educado sob o manto da Una Sancta (Igreja Apostólica Romano), o autor de O menino, a névoa e o embornal espiritualizou-se mais ainda ao ler livros de Alan Kardec, e segue a doutrina. Só não sei se ao chegar ao céu um dia que esperamos tarde vão o deixar voltar de lá para outro ciclo de aperfeiçoamento vital. Um homem honesto, trabalhador, que conheceu a miséria na puerilidade, a pobreza, e hoje é remediado como a maioria dos homens honestos, que conquistou um lugar ao sol com o suor do próprio rosto, talvez fosse bem empregado na esfera celestial.

Entre as crônicas mais pessoais há a que fala de Lucia, esposa, a quem chama de minha Dona, no dia em que perdeu involuntariamente a aliança, nos aportando a outro cronista, Alceu de Amoroso Lima, que no livro Tudo é mistério, fala do ciúme corrente docilmente entre as pessoas que se amam inefavelmente, ciúme protetor, invulnerável às violências das paixões mesquinhas. Quanta doçura há na vida, quando as coisas simples são as que nos fazem felizes.

Câmara Cascudo gostaria de ler e de acrescentar ao seu livro História da Alimentação no Brasil algumas receitas da Hinterland espírito-santense, aqui e ali presentes no livro, cujo teor em prosa nos faz lembrar de todas as miudezas poéticas de Manoel de Barros, fazendo que Matusalém Dias de Moura, em viés pessoal, mantenha a tradição da poética da prosa, que, aqui, nos faz lembrar Rubem Braga, quando o autor nos fala dos passarinhos que cantaram em sua vida, desde Iúna, no sul do estado, até os beija-flores de Santa Tereza.

Todas as singelezas dos poemas do autor ganham continuação em sua prosa de cronista. Li as crônicas com olhos de boi no campo. Singelo livro!

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