Confissão incidental

Pedro J. Nunes

Não foram poucas as possibilidades para a elaboração deste texto, arquitetado inicialmente como um mero roteiro informativo sobre a Igreja e Residência Reis Magos, localizada em Nova Almeida, Serra, ES, ao qual acresceria uma nesga de ensaio histórico, incrustado de datas, nomes distintos e mentiras heroicas. Seria um caminho fácil, guiado por visitantes ilustres como o príncipe Wied-Neuwied, os naturalistas Biard e Hilaire, o bispo José Coutinho ou Sua Majestade D. Pedro II, entre outros. Por último, entre as cogitações complementares, pensei em, quem sabe, meter-me a especialista em arquitetura histórica e dizer meia dúzia de bobagens sobre vigas, cornijas e abóbadas. Mas nenhuma delas satisfez a necessidade de expor, mais que sobre a impressão, sobretudo sobre a sensação (*), viés para elucubrações imprecisas, produzida por minhas constantes visitas à construção localizada num platô que oferece vista da foz do rio Reis Magos, chamado pelos índios de Nhupãgoa, e seu encontro ameno com o mar e faz perder os olhos em terra ou em mar.

Visito frequentemente a Igreja e Residência Reis Magos. Prefiro quando não há lá ninguém e meu lugar favorito é uma das grandes janelas que dá vista pros Reis Magos. Não há como evitar um bafejo sufocante de passado, a possibilidade assustadora da cena de centenas, de milhares de índios moendo cal de conchas, carregando pedras de recife, areia e barro morro acima e moldando as telhas da igreja nas próprias coxas, submetidos ao fundamento dos catequizadores de que era necessário moer o lombo, se preciso fosse, no caminho estreito do Paraíso. Não bastassem a isso os argumentos ou a própria epifania, serviam o tronco e o açoite. Os nativos, sob a nova ordem, e com ilustrações muito superiores às de seus cultos, iam agregando braços fortes e piedosos à obra, submetendo-se às novidades da cultura cruel enquanto erigiam as enormes paredes do templo.

Incompreensível a existência de uma masmorra úmida na lateral direita do prédio. Quando estive na região pela primeira vez, em 1988, fechada a igreja para reformas, pude aproximar-me, agarrar-me às grades e observar o cativeiro obscuro. Anos depois, quando pude inverter meu olhar, do lado de dentro das grades, recrudesceu o sentimento de repulsa por aquele aposento cujos propósitos permanecem para mim um paradoxo.

Inevitável que quando entro na Igreja e Residência Reis Magos, em vez de pacificar-me, desembainho a espada. Não posso ali ser piedoso ou crente. Meus passos em seus recintos me assombram e inquietam, como se pudesse eu ouvir os lamentos das vozes daqueles que, certamente à custa da saúde, da vida e da própria cultura, erigiram as paredes e colocaram as telhas, mas nunca tiveram seus nomes devidamente gravados na História, essa senhora no mais das vezes obscura e injusta. Quanto mais mergulho nessa disposição, mais me admira, no entanto, a beleza que esses inúmeros seres anônimos, outrora livres, agora sujeitos a uma fé incompreensível e sem lastro, compuseram. É o que justifica um encantamento ressentido o reconhecer, no mais profundo da minha alma, o mérito dos verdadeiros autores dessa obra magnífica que é a Igreja e Residência Reis Magos. Por isso aqui vão estas notas reticentes que, se de nada servem, ao menos traduzem o olhar enviesado de seu autor.

Desejo que as fotografias que selecionei possam falar por mim o que não fui capaz de falar.

(*) Aqui falo da acepção da retomada do vocábulo no século XVIII, conforme Houaiss: (1718) "impressão produzida por estímulos exteriores sobre os sentidos, causando prazer ou sofrimento", (1743) "estado psicológico com forte componente afetivo".

Próxima

Leia outras matérias especiais

Voltar